Baixada Santista Cidade Filipe G. Rodrigues São Vicente

A crise causada pela pandemia da Covid-19 afeta todas as dimensões da vida, principalmente da classe trabalhadora

Por: Ailton Martins

Samuel Fernandes todos os dias pela manhã recolhe galhos secos na mata, para utilizar como lenha para acender uma fogueira e esquentar água dentro de um tambor de óleo de trinta litros, sua rotina começa cedo: banho, café e ir de bicicleta para o trabalho. A fogueira permanece acesa durante o restante do dia, alimentada por outros galhos colhidos por outras pessoas da comunidade, qual Samuel faz parte. Assim da fogueira e do território ocupado onde vivem constroem um espaço coletivo.

“Nós esquentamos água ali, a gente da comunidade se junta pra pegar lenha, pra esquentar água, fazer comida, nós estamos vivendo assim, um ajudando o outro”.

A humanidade descobriu o fogo há milhares de anos. Assim começou a dominá-lo para produzir luz, calor, se proteger nos períodos de inverno e, com isso, diversificou e desenvolveu técnicas para o preparo de alimentos; produziu ferramentas de trabalho e de guerra. O fogo tornou-se parte de rituais e, sentar-se em volta de uma fogueira também está relacionado à forma de comunhão e de partilha de saberes em muitas culturas. Para Samuel, auxiliar de serviços gerais, ocupante de uma área de preservação ambiental, no bairro Sítio do Campo, em Praia Grande, Litoral de São Paulo, talvez, todos esses esquemas estejam presentes, contudo, para ele foi apenas a maneira que encontrou para driblar o preço do gás, sobreviver à crise econômica e à pandemia que empurrou para a margem centenas de milhares de pessoas. 

Foto: Ailton Martins

Há cerca de 15 km, na cidade vizinha, Santos, o município da Baixada Santista que lidera o ranking em qualidade de vida no Brasil, em situação semelhante com a de Samuel, a cozinheira Sandra Ribeiro, sem emprego fixo e registro em carteira há quatro anos, para sobreviver comercializa bolos de potes, trufas, geladinhos e pães de mel nas ruas. Durante o período de isolamento social passou por extremas dificuldades, chegou até a ser abordada pela Polícia Militar que a orientou sobre a não permissão de vender seus produtos durante o lockdown. Sem renda, foi graças ao fato de estar numa ocupação, qual a possibilita não arcar com aluguel, que não foi parar nas ruas. Sandra também é uma ocupante sem teto, porém não de uma área de preservação ambiental, mas sim de um prédio abandonado pelo poder público há mais de vinte anos, onde funcionou um manicômio, Casa de Saúde Anchieta, uma das últimas instituições psiquiátricas brasileiras que torturava pessoas com problemas de saúde mental e de drogadição. Um local que devia constar uma placa com a seguinte frase: aqui neste local o Estado brasileiro por meio de uma instituição torturou e matou pessoas dizendo estar as curando. Mas hoje o espaço ocupado por famílias de baixa renda ressignificou o horror.

 

Foto: Ailton Martins

Há 10 km, de Sandra, noutra cidade, São Vicente, a primeira Vila do Brasil, Marcus Vinicius, desempregado, auxiliar de serviços gerais, vive com sua companheira e com seu filho de três anos num quarto e cozinha, locado no valor em torno de pouco mais que meio salário-mínimo. Sua fonte de renda advém dos serviços avulsos em barracas de praia que realiza quando tem Sol, dias de chuva não há trabalho. Com isso a sombra de voltar a viver nas ruas é constante. Durante a pandemia, ele e sua companheira ficaram sem trabalho e foram parar num abrigo com o filho, (na época com um ano de idade). Rodando pela cidade, perdido, em busca de trabalho, Marcus certas noites dormiu na rua, na Praça Barão, no Centro. Na rua segundo ele, ninguém dorme direito, a violência espreita, foi assaltado e perdeu os documentos. No abrigo o filho pegou sarna humana. Em consequência a depressão quase o fez desistir de tudo. Mas aos poucos com a ajuda de uma e outra pessoa, conseguiu alugar um quarto e cozinha e enfrenta junto com sua companheira o desafio das incertezas e crises financeiras geradas pela pandemia.

Em março de 2022, completará dois anos desde que a pandemia chegou ao Brasil, ou precisamente que o estado brasileiro reconheceu o surto e adotou os protocolos de proteção social, os quais ele nunca assegurou. Logo, falar de crise econômica e sanitária é também falar da negligência do Estado para com pessoas como Sandra, Marcus e Samuel, ou da sua eficiência como máquina de matar corpos da classe trabalhadora, em maioria pretos, periféricos, femininos, mestiços, LGBTQI+, indígenas… corpos que para o sistema capitalista servem à exploração, e diante de uma pandemia descartáveis.

 

A pandemia de Covid 19, causada pelo vírus SARS-CoV-2 ou Novo Coronavírus levou ao óbito 5,65 milhões de pessoas no mundo, de acordo com dados da Our World in Data, com atualização em 29 de janeiro de 2022, no Brasil 626 mil. 

Apesar da flexibilização nos protocolos de segurança, os aumentos de números de infectados e de novos óbitos mostram que estamos longe do fim desta tragédia e a Ômicron, uma das cinco variantes da Covid 19, que circulam pelo mundo, acendeu mais uma vez, um sinal de alerta de que a normalidade social é um engodo que irá continuar matando, e quem vai continuar morrendo de Covid ou de fome serão os trabalhadores, pois a proteção social na prática nunca existiu e, para piorar, a pandemia deflagrou uma crise econômica que aprofundou a desigualdade social. No Brasil, por exemplo, nove meses após o início do surto, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou que a situação de crianças e de adolescentes se agravou, em particular entre as famílias mais pobres. A segunda rodada da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, lançada em 11 de dezembro de 2020 pelo Unicef, mostrou que as famílias morando com pessoas menores de 18 anos estão sofrendo cada vez mais os impactos econômicos e sociais da crise sanitária, principalmente os mais vulneráveis. 

Um ano após o lançamento da pesquisa, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que a pandemia abriu um espaço entre a inflação da base e a do topo da pirâmide de renda, que andavam juntas até fevereiro. No último mês antes da chegada do coronavírus ao Brasil, por exemplo, a inflação de famílias de renda baixa era de 3,29% no acumulado em 12 meses. A das de renda alta era 3,07%. Em julho, esse índice ficou em 2,94% para os mais pobres e 1,73% para os mais ricos. 

Logo abaixo assista a primeira parte da matéria “A crise causada pela pandemia da covid-19 afeta todas as dimensões da vida, principalmente a da classe trabalhadora”. em vídeo:

Na cidade de São Paulo, de acordo com censo encomendado pela prefeitura, a população em situação de rua aumentou 31%, no ano de 2021, em relação à última pesquisa de 2019. A situação é semelhante em outras cidades do país, revelam estudos recentes. 

Um levantamento realizado pela Campanha Despejo Zero, organizada por entidades e movimentos sociais o número de famílias despejadas de casa cresceu 340% na pandemia, mesmo com o Projeto de Lei que proibia despejos em imóveis urbanos durante a pandemia, aprovado pela Câmara e pelo Senado e validado pelo Supremo Tribunal Federal.

Portanto, Samuel, Marcus e Sandra dentre tantas outras pessoas trabalhadoras, são apenas algumas das vidas que continuam a sobreviver à margem de um Brasil que aos poucos retorna ao Mapa da Fome, devido à pandemia, aos cortes orçamentários de políticas sociais, econômicas e, principalmente por causa de um governo genocida como de Jair Bolsonaro, cuja perversidade se estivéssemos num país de autoridades sérias, já deveria ter sido deposto e julgado pelos crimes contra a população brasileira; crimes contra a humanidade.

Para a estudante de serviço social da Unifesp e militante na área de habitação, Thais Helena, os obstáculos no acesso à alimentação, higiene, trabalho, transporte e direitos são apenas algumas dificuldades que a classe trabalhadora, em específico a população pobre e preta sempre enfrentou diariamente, e a torna ainda mais vulnerável. A maioria dos casos não é quantificado, há uma invisibilidade histórica. A pandemia agravou problemáticas anteriores e revelou o desprovimento dos modelos de proteção social. 

Foto: Ailton Martins

“A primeira vítima da Covid 19, foi uma empregada negra que se infectou porque a patroa tinha ido viajar pra Europa […] quando isso aconteceu, logo que veio essa notícia, a gente já sabia que os mais afetados seriam os trabalhadores […] acho que a pandemia se mostrou uma limpa mesmo, ela veio num momento, inclusive, muito estratégico, quando você tem uma PEC de gastos, que vai precisar congelar por vinte anos recursos, e tem um contingente que vai ficar mais fora do acesso ainda à saúde, à educação, etc. o que você vai fazer com esse pessoal? O que você vai fazer com essa população? Você vai dizimando […] a vida parou na pandemia pra algumas pessoas, mas pra outras não, a vida continuou, inclusive os desastres, os incêndios, a falta de médico no postinho, a falta de um CRAS, os despejos […] tudo continuou normalmente pra população pobre, […] o genocidio da população pobre, preta, indígena, continuou…”

 

Recentemente numa entrevista para a Carta Capital o neurocientista Miguel Nicolelis afirmou que é muito cedo para suspender as medidas de prevenção, apesar da variante Ômicron ser considerada uma cepa menos letal. “Não existe nenhuma indicação, baseada no perfil da Ômicron, que possa dizer que a pandemia está no fim”.

Para os trabalhadores, resta seguir adiante, se vacinar. Torcer ou se organizar entre os seus para resistir aos tiros da polícia, à fome, ao vírus e a toda violência imposta pelo Estado capitalista.

Blog: Frequência Caiçara 

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