Cezar Mangolin Colunistas

A vida de gado e o “homo sapiens sapiens”

Vivi na área rural durante alguns anos. Poucos anos. Por duas vezes “sapiens”, torna-se quase ofensivo comparar diretamente a vida do humano e do gado. Mas o gado tem mais decência por uma simples razão: no pasto nunca veremos uma vaca deitada sendo abanada e servida por outras, como se ela fosse, por qualquer razão, melhor ou mais interessante. Não temos nos currais um grande espaço destinado para um boi apenas, com todas as mordomias, enquanto os demais se amontoam em pequenos e sujos cubículos… Não ter as patas dianteiras livres, não falar e ter o cérebro menos capaz que o nosso não permitiu às vacas estabelecer distinções sociais, fazer discurso meritocrático e jamais pensariam na frase infeliz do “ensinar a pescar”… Muito menos aprenderam a explorar umas às outras…

Mas há coincidências lamentáveis… Lembro de quando estava na área rural. Chamava a atenção a vida do gado e sua rotina. Vale pensar nela um pouco.

Pela manhã, são postos a trabalhar os bois, as vacas e os bezerros. As vacas são ordenhadas, os bezerros amamentados, todos encaminhados para o pasto após a noite presos no curral. Claro, menos os bezerros que ainda mamam, para que não suguem todo leite das vacas ao longo do dia.

Seu trabalho é bem específico: as vacas devem comer, reproduzir e produzir leite; os bois devem comer e engordar, também reproduzir; os bezerros também comem e engordam e ocuparão, em breve, a posição dos adultos.

Os bois e as vacas já sabem bem qual é a rotina. Pouco trabalho dão. Os bezerros ainda estão aprendendo o processo, mas rapidamente se adaptam. A vida do curral para o pasto e do pasto para o curral não é muito cheia de emoções.

Um ou outro as vezes sai um pouco da linha, mas a intervenção precisa de seu dono logo os coloca dentro da ordem. Para os mais rebeldes, uma punição severa resolve: açoites, rabo quebrado, isolamento dos demais… simples assim.

Não é nem mesmo necessário que o dono deles diga nada pela manhã: simplesmente destranca a porta e eles saem em direção ao pasto para mais um dia.

Bois e vacas não pensam, portanto, não questionam nada dessa vidinha besta. É como se fosse determinado por algo, pelo além, que a vida deve ser assim e pronto. Apenas vivem um dia após o outro, com uma resignação comovente.

Andam em bando, mas são como ilhas, parece que desconhecem uns aos outros, embora estejam na mesma condição: esbarram-se no caminho para o pasto e na volta para o curral, de cabeça baixa, com olhar fixo, com uma expressão de que nada há em suas cabeças além da necessidade de ir e vir, sem motivo, apenas porque alguém decidiu que deveria ser assim.

No fim da tarde, início da noite, a procissão toma o caminho de volta.

Um mugido aqui, outro ali, mas nada que seja coletivo, apenas o andar mais lento de uns, mais corrido de outros, que tomam a frente e empurram os demais, numa pressa que até parece ter um sentido, uma razão, mas nada que vá além do objetivo: o retorno ao curral, para mais uma noite que é, apenas e tão somente, o prenúncio de outro dia, que será substancialmente tão igual ao anterior que é até possível prevê-lo.

Caso pensassem, é possível que antes do sono agradecessem a deus por terem retornado. Sem pensar que retornaram apenas para voltar outra vez e que sua vida se resume apenas a isso. Talvez até agradeceriam ao seu dono, afinal, têm comida e onde dormir, sem perceber que comer e dormir é apenas uma condição necessária para dar mais ao dono, não a si.

Chega a deprimir a vida do gado…

Pensei nessas coisas e tive essas lembranças de mais de 20 anos atrás observando uma estação de trem, no meio da semana, finalzinho da tarde, hora da volta da boiada que vive um dia após o outro, resignadamente…

 

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