Colunistas Daniel Kuaray Timoteo

Conheça nosso novo colunista: o Indígena Daniel Kuaray Timoteo

Daniel Kuaray Timoteo é indigena da Nação Guaraní M’bya, aldeia Yynn Moroti Whera, de Biguaçu, SC. Entre outras atividades é Professor, Pesquisador e Estudioso de Plantas Medicinais. 
 
KUARAY EM BUSCA DA TERRA SAGRADA
Sempre me contavam muitas histórias em roda do fogo sagrado, ao som do mbaraka mirim as palavras me fascinavam, muitas dessas histórias seguiam vários dias sendo contadas, um pedaço em cada noite, e me imaginava dentro delas e com elas me tornava um Ser Guarani; pode ser que essa história aconteceu, ou pode ser apenas um sonho. A história que eu vou contar é de Kuaray, um escolhido que levaria à Terra sem Males.
Muito tempo atrás, longe, perto de um grande rio havia uma pequena aldeia feliz, onde vivia um povo muito alegre e guerreiro, plantavam, colhiam faziam as suas festas sagradas, cantavam e dançavam ao criador; a esperança de uma vida plena era certa naquela comunidade, havia uma família, uma simples família, a grande mãe a tchedjaryi se chamava Takua, uma grande líder que tinha o conhecimento das plantas sagradas, o tcheramoi era o karai popygua um grande ancião que sabia ler a natureza, conhecia o tempo da chuva, do plantio, ensinava aos mais jovens e contava as suas aventuras. O filho deles se chamava Karai Tupã, casado com a jovem djatchuka .
Todos moravam em uma mesma casa, e TAKUA sempre dizia que queria muitos netos, mas ainda não tinha; naquela época quem tinha uma grande família tinha muitos prestígios, pois diziam que eram abençoados pelo criador.
Djatchuka foi a um lugar sagrado no meio da mata e pediu para o criador Nhanderu e Nhandetchy a grande mãe para que ela tivesse pelo menos um filho; levou milho e mandioca e batata como oferenda, rezou no petyngua e cantou com o takuapu, fez isso escondido e pediu para que tivesse um filho.
O karai Popygua um dia levantou feliz disse que havia sonhado com um menino que viria para trazer grandes mudanças e para fortalecer o povo; contou para todos em redor do fogo naquela manhã. Djatchuka muito feliz sorriu e preparou o bolo de milho.
Não se passou muito tempo, na época do Arapyau, ela estava gravida e feliz, cantando sempre; Karai Tupã agradecia ao criador todos os dias.
Muitos cantos e luas se passaram até seu filho nascer; o céu estava estrelado, a lua cheia brilhava como nunca havia brilhado antes, assim nasceu Kuaray.
Com o tempo Kuaray foi crescendo, aprendendo a Ser um Guarani, cantando como sua mãe, aprendendo a identificar as ervas como sua vó, a ler a natureza como seu avo e a praticar a dança do Tchondaro como seu pai fazia, que era a preparação para ser guerreiro.
Ainda muito jovem Kuaray corria entre as matas, entre as arvores como um guerreiro se fortalecendo a cada dia, seu ser e espirito.
Mas tudo mudou um dia. Um vento suave e sereno trouxe uma visão ao líder daquela aldeia, o sonho seria de um grande animal, parecido com eles, mas ele tinha muitas cabeças, muitas caras e muita fome de sangue. Todos ouviram esse sonho, mas não entenderam e acharam que o pajé estava muito velho e não sabia mais nada.
Passou-se um tempo, os guerreiros vieram correndo, trouxeram os Djurua, todos se perguntavam: seriam uma espécie de gente? Mas eles tinham as bocas peludas; seriam animais? Que línguas estranhas eles falavam; então as mulheres se esconderam, as crianças mais corajosas trouxeram as frutas para amansa-los, eles pareciam pacíficos, estavam vestidos, trouxeram objetos estranhos e trocaram com os lindos colares. Naquela noite viram, que aqueles Djurua eram gente, pois comiam e bebiam as bebidas sagradas, também dançavam em redor do fogo sagrado, até aprenderam a falar como gente e a dizer as palavras sagradas.
Passaram várias luas e toda a comunidade já estava acostumada com eles, então karai popygua disse que precisaria ensinar mais sobre os caminhos sagrados a Kuaray e teriam que fazer algumas viagens na mata. Os dias se passaram, sorrindo se despediram, apenas os dois foram fazer aquela jornada.
O rio era grande, pois representava a grande cobra sagrada, então viajaram também de canoa, a noite, sobre as estrelas conversavam sobre a origem do mundo guarani. Depois de muitas ervas colhidas de muita aprendizagem, retornaram ao lar.
Mas ao retornar encontraram as casas queimadas; cadê a sua mãe? perguntava Kuaray, cadê a sua família? Nem os objetos sagrados …não havia restado nada.
Seguiram a estrada feita pelos Djurua, no meio da mata seus parentes estavam amarrados; escondidos observaram aqueles Djurua rindo, as crianças estavam chorando.
Kuaray queria avançar com toda a força mas seu pai o impediu. Disse que a noite seria mais fácil de invadir e salvar o seu povo. Naquela noite os dois rezaram as divindades celestiais, pediram ajuda aos quatros ventos, a noite escura sem estrela, o vento forte assoprava tudo, a chuva veio. Os Djurua em suas cabanas tremiam de frio, então Kuaray silenciosamente desamarrou as mulheres e os homens que estavam no meio da chuva. Como em uma magia ancestral todos conseguiram fugir para a mata, como em uma espécie de sono os brancos dormiram profundamente.
A chuva forte foi se acalmando, mas eles não podiam voltar para a sua terra; os Djurua viriam atrás. Então resolveram caminhar até o lugar sagrado que ficava distante da sua Terra, um lugar onde os espíritos dos antigos conversavam entre as folhas. Montaram ali uma cabana e por três dias e três noites rezaram ao criador. Em um dia lindo de Sol, saíram para ver o tempo, todos com fome avistaram algumas frutas, e sementes trazidos pelo vento, pensaram ser uma oferenda que os guardiões da floresta mandaram através do vento. Pode ser que ninguém acreditasse, mas eu ainda conto do mesmo jeito que me contaram, havia sementes de todo o tipo, frutas e até o pentyn. Mas inacreditavelmente consigo imaginar a sensação, pois as vezes, não há mais saída e pedimos aos guardiões da florestas e como em uma espécie de magia surgem a grande oportunidade. Mas voltando a história, depois de saciar a fome, resolveram partir, caminhar liderados pelo grande avo, saíram em caminhada pela grande busca da Terra sem Males. Vou explicar um pouco para você como surgiu a Terra sem Males.
Segundo a própria história que me contavam, existem muitas terras celestiais; existia um tempo em que nossos ancestrais viviam juntos com nossas divindades e foram  trazidos na primeira Terra, como os seres humanos já estavam se igualando a eles, pois sabiam a magia das estrelas e tinham o conhecimento de várias  sabedorias foram trazidos para cá; então aqui nessa Terra foram provados, tendo alguns se desviados do caminho sagrado; as divindades colocaram aqui como uma prova, mas deixaram pistas para voltar à Terra sagrada. Mas com o tempo os humanos foram se esquecendo dos cantos, das histórias, então furiosos as divindades mandaram os Tupã kuery que são as divindades do vento, dos raios e responsáveis pela destruição e reconstrução do mundo; os Tupã Kuery vieram sobre as nuvens mandaram os quatros ventos assoprar, os seus grandes chicotes, as suas lanças lançaram sobre a primeira Terra e muitos seres foram dizimados, pois houve uma grande onda, a agua foi vindo em todas as direções, apenas as palmeiras azuis que fazem parte do firmamento da Terra estavam intactas. Muitos morreram, mas os guarani rezaram a Nhamandu e a Nhandetchy a grande mãe que concedeu uma chance a eles e sobre uma grande montanha suas vidas foram salvas. Isso é só uma parte da história, mas que é importante lembrar. Para confortar o coração, uma divindade deu aos Guarani a fumaça sagrada, que vem para se conectar e conversar com eles. A terra sem males é um lugar entre as divindades, um lugar sagrado.
Por isso então a família de Kuaray foi buscar essa Terra, mas e se história fosse apenas história? Teriam que correr esse risco, pois seu lar foi destruído.
Foram caminhando em direção ao sul, pois a cruz no céu representa as quatros direções.
A grande caminhada se inicia por um caminho que todos conheciam, o caminho sagrado, que era uma rota utilizada por muitos povos; existia um modo de troca entre o povo guarani e o povo das montanhas. Antigamente chamavam esse caminho de Tape Porã, ou caminho bonito, porque esse caminho foi feito por diversos povos que plantavam e faziam inscrições para marcar esse caminho sagrado; acho que agora chamam esse caminho de Peabiru.
Por esse caminho muitos dias e noites foram caminhando; Kuaray com o tempo foi crescendo buscando entender porque isso foi acontecer.
Chegaram então a uma grande cachoeira, onde a noite dava para ouvir os cantos sagrados, o YY Guaçu era um lugar sagrado, onde também havia inscrições nas pedras que ali haviam passados os Guarani. As mulheres batiam o Takuapu, o som da terra e da agua se misturavam; o Takuapu que é um pedaço de bambu dado às mulheres pela grande divindade celestial Takua. Somente as mulheres podem utilizar esse objeto de poder. Muito dos nomes são dado aos Guarani em homenagem a essas divindades, pois dizem que cada espirito vem de diferentes regiões da Terra sagrada.
Kuaray triste e com saudade de sua antiga casa, amaldiçoava esse Djurua. Sem entender o que tinha acontecido seu coração foi enchendo de ódio, a sua esperança havia acabado, nem ao redor do fogo sagrado ficava mais. Seu olhar só buscava a vingança, esse sentimento que veio junto com Djurua ficou em seu espirito.
Questionava, para que procurar uma terra que só existe na cabeça desses velhos. Mas mesmo assim respeitava a crença de seus parentes. Apenas sabia do seu próprio sentimento.
Logo que puderam, todo o seu povo continuou a caminhada, mas logo encontrou outro povo, o povo da montanha.
O povo da montanha falava outra língua, não eram receptivos ou apenas tinham medos; assim como guarani, também sofreram grandes massacres, seus líderes espiritual se encontrou com os Guarani, fizeram as trocas das sementes sagradas e concordaram logo em sair das terras do povo da montanha.
Caminharam por muitos dias e encontraram o povo do sol, assim como para nós o sol também é muito sagrado, esse povo do sol, também diferente, usavam muitas pedras e eram grandes guerreiros; mas também concordaram e fizeram as trocas de panela de barro por sementes.
Logo seguiram o caminho novamente. Nisso tudo Kuaray ficava mais velho e seus pais se tornavam anciões.
Em sua busca decidiu descansar em uma terra que parecia ser fértil. O povo cansado de tanto caminhar resolveu ali plantar suas sementes; era perto de um rio, os ventos assopravam em seu favor, havia muitas ervas medicinais sagradas. E logo chegaram outras pessoas que souberem daquele lugar, viveram felizes por um breve tempo.
Aquele lugar novamente foi invadido. Existiam Djurua por todos os lados, mas esses eram piores; os guerreiros daquela aldeia não conseguiram nem se armar a tempo. Sedento de guerra, os Djurua chegaram atirando matando velhos e crianças, inclusive o pai e os avós de Kuaray; ele exímio guerreiro atirou com a sua lança e sua flecha mas foi atingido em sua perna por aqueles bocas peludas. Sua mãe ainda velhinha conseguiu pegar Kuaray que sangrava muito e correu para a mata. Mais uma vez a matança tomou conta da sua história.
Sua mãe cuidou dele, preparou muitos remédios feito da própria natureza e a noite ela não podia nem cantar alto, rezava baixinho murmurando cantos de cura. Muitas luas depois Kuaray se recuperou. Kuaray triste se queixava a sua mãe que parecia não se importar, ele então jurou vingança. Ela preocupada, falou: aquela cobra, aquele animal com várias cabeças que iria vir, é esse sentimento, de sangue, de guerra, de trevas. Kuaray entendeu, mas não podia mudar aquela reação, esse sentimento já o havia dominado. Seguiram por aquele antigo caminho, encontraram alguns parentes que haviam corrido daquele trágico dia, enfim, seu pequeno povo, mais ou menos umas vintes pessoas, sobreviveram.
Caminhando sem rumo, seguiram as estrelas, liderados por Djatchuka que rezava todas as noites para a grande Mãe Nhandetchy. A sua dor era imensa, mas o conforto vinha das belas lembranças.
Chegaram então em uma praia linda, o mar era tão bonito, calmo, sereno e não havia vestígios de Djurua por ali. Kuaray já adulto, se preocupava muito com o que sobrou da sua família e vigiava toda a noite o acampamento.
O dia estava tão bonito, Nhamandu o Sol havia acordado feliz, o mar fazia os peixes pular para cima, era o tempo de pescar. Todo seus parentes comiam felizes por um momento esquecendo de todo mal que havia lhes acontecido.
Em uma noite Djatchuka disse a Kuaray que ele devia ter uma família, que breve ela iria partir para o Criador. Disse para ele procurar até encontrar alguém para ele; ela toda serena e calma cantou alguns cantos. Kuaray assustado concordou. Na mesma noite as brumas tomaram conta da praia, todos haviam dormido, Kuaray acordou assustado procurando a sua mãe, correu ao longo da praia, bem longe escutou um canto alto, estremecido; esse canto era o canto de seus ancestrais, em um barquinho bem lá no meio do mar estava a sua mãe. Ele não podia acreditar no que estava acontecendo. Ela não estava sozinha, seria um sonho? Na canoa ela se foi e na canoa estava um ser grande, parecido com um grande ser do Céu, na canoa ela cantava, abriu um grande clarão e assim ela sumiu entre as brumas. Seria o efeito do chá que ele havia bebido? A sua mãe foi levada de corpo e espirito para a terra sagrada?
No outro dia Kuaray contava o que aconteceu. O seu povo acreditou. Kuaray mesmo triste começou a ter um pouco de esperança, rezou em seu petyngua sagrado e cantou um dos belos cantos e dançou como um grande guerreiro.
Passado um tempo em que todos em diversos lugares começaram a chegar naquela terra; em seu novo lugar Kuaray então conheceu a sua esposa uma bela jovem que se chamava Keretchu, que veio de uma Terra onde se encontrava os antigos Guarani, que também faziam os rituais sagrados em cima do Ita Tin Guaçu, ou Grande Pedra Branca, mas isso é uma outra história que um dia eu vou contar.
Teve muitos filhos, e ele contava em redor do fogo que Kuaray nunca parou de encontrar a Terra sem Males, pois descobriu que a terra sem males pode ser alcançada ainda em vida, pois o canto e a dança sempre renovam o espirito do guerreiro; a Terra sem males existe para todos, assim que conseguir renovar o seu espirito.
Muitas lutas foram travadas ao longo do tempo, mas a espiritualidade guarani renasce através dos cantos sagrados.
Até hoje escuto diversas histórias, como em um simples conto podemos relembrar das guerras e dos trajetos feito até aqui. Kuaray então buscou entender a sua própria essência.
Assim nasce uma pequena história.
Kuaray muito esperto, teve uma filha que a chamou de Takua em homenagem a sua grande avó.
Takua sempre ouvia de Keretchu grandes histórias; a ensinava como fazer os cestos, como a armazenar as sementes, mas Takua gostava também de aprender a fazer o arco e flecha.
Kuaray também a ensinava a rezar na grande Opy, a casa sagrada.
Um dia Takua soube das inscrições em uma ilha, onde o vento assopra fortemente, desobedecendo as ordens de seus pais por ser muito curiosa, pegou a canoa e foi a ilha sagrada, o que ela descobriu?
Bem essa e outra história que eu vou contar em TAKUA E OS SEGREDO DA CONSTELAÇÃO SAGRADA.
Vocabulário:
A língua escrita guarani varia conforme as regiões, pois não existem uma ortografia padrão no Brasil, podendo ser escrita com X ou TCH ,existem muitos dialetos
NHANDETCHY OU NHANDEXY: Grande mãe representada na cosmologia guarani, esta presente desde a criação dos mundos.
Nhanderu: Grande pai criador.
Nhamandu: divindade que representa o sol.
Takua:divindade feminia que deu o instrumento sagrado Takuapu.
Tupã: Divindade do trovão, ser dos ares, da destruição e da reconstrução.
Kuaray: nome dado aqueles que vieram iluminar o caminho.
Djatchuka:Grande divindade feminina.
Takuapu: instrumento em forma de bastão  que é representado por um pedaço de bambu, onde as mulheres cantam e dançam.
ARAPYAU: tempo de renovação guarani Mbaraka Mirim: chocalho sagrado.
Popygua: um instrumento sagrado.
Karai Popygua: nome dado a um líder espiritual.
Tcheramoi xeramoi: grande avo.
Tchedjaryi, xejaryi: grande avó
Povo da montanha; segundo a mitologia kaingang, em uma das mitologias, surgiu da montanha sagrada. Povo do sol, segundo uma das mitologia xokleng  reverencia o sol.
Notas do autor :
Esse é um pequeno conto que retrata a trajetória pela busca da terra sem sagrada, a terra sem males é a busca incessante por uma espiritualidade, o canto-dança retrata o movimento pelo sagrado, o movimento por uma terra sem mal, faz parte da educação corporal guarani, a importância dos anciões e os contos fazem parte da busca por essa valorização.
Houve muita política de extermínio, muitos massacres ao longo desses anos. Muitas doenças vieram junto com os não indígenas.
O caminho do Peabiru é um caminho que leva até as montanhas do Peru, esse caminho segundo as próprias histórias também leva a terra sagrada.
Coloquei aqui algumas palavras apenas em guarani, sendo que algumas delas podem ter várias interpretações.
O objetivo é escrever pequenos contos como uma história contada em redor do fogo.

 

Daniel kuaray Timoteo
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