Colunistas Mari Polachini

Pequeno ensaio sobre vírus, sociedade e resiliência

Por Mari Polachini.

 

Peruíbe, 29 de março de 2020.

 

Quando eu era criança, a D.Deolinda, uma senhora portuguesa que morava em frente à casa dos meus pais, na zona sul de São Paulo, tinha uma empregada doméstica chamada Germana, uma “nortista”, como diziam à época, com um sotaque que eu achava lindo.

 

Era o início da década de 70, ela tinha 7 filhos, e às vezes, por necessidade em um tempo em que não haviam creches públicas, escolas que atendessem todas as crianças, ou mesmo o ECA que lhes garantisse direitos mínimos, ela levava alguns desses filhos para o trabalho.

 

Minha mãe, Italiana de coração amplo, os acolhia em casa, onde passavam o dia brincando conosco, enquanto sua mãe trabalhava.
Lembro-me, memória truncada pela falta de acesso à informação que a ditadura militar nos impunha, de quando a epidemia de meningite meningocócica chegou.

 

Ela se fez presente em nossas vidas através da contaminação dos filhos dessa mulher, que morava justamente no entorno da região que foi o início do surto.
Fiéis aos princípios da igreja Presbiteriana que frequentávamos, todas as noites orávamos antes de nos recolher, ajoelhados em redor da cama da minha mãe, que com a voz embargada rogava a Deus que poupasse ao menos um dos filhos dessa pobre mãe, que os foi enterrando, um a um, vítimas da meningite.

 

Não me lembro ao certo quantas das crianças sobreviveram, se uma ou duas. Mas as preces da minha mãe marcaram fundo na minha alma, assim como a impotência daquela família diante de uma epidemia que os atingia em meio à sua miséria.
Vivemos anos com esse fantasma da epidemia apavorando nossas vidas, mas muito pouco recebíamos de informação ou orientação.
Anos depois, já no ginásio, tivemos as aulas suspensas pela morte de uma menina em nossa escola.

 

Ficamos em casa, sem poder brincar com os amigos, até sermos liberados à normalidade.
São memórias antigas, embotadas pela falta de transparência que um regime ditatorial nos impunha, pois só nos chegavam as notícias que a censura permitia.
Algumas décadas se passaram até eu conseguir entender o que havia vivido e a que havia sobrevivido.

 

Essa epidemia foi a primeira vez que me defrontei com esse poder de um inimigo invisível, mas com força suficiente para intervir na normalidade de uma nação.
Levou vidas amigas, vidas conhecidas, demorou anos para ser vencido e teve sua importância diminuída para atender às necessidades de um regime militar que não admitiria qualquer mácula em sua gestão.

 

Não tínhamos internet, nem fakenews, poucas casas possuíam televisão, e a censura institucionalizada garantia que a versão oficial fosse a nossa única referência.
Uma década depois, quando estava me formando na faculdade, mais uma vez nossa sociedade foi abalada em suas estruturas pela chegada de um vírus.
Estávamos celebrando os primeiros ares de liberdade que o fim da ditadura militar trazia para o país

 

Para aqueles que como eu, nasceram e cresceram em um regime de exceção, estar em uma sociedade livre da censura, onde podíamos falar, ver, escrever e ler o que bem entendessemos era uma sonho que se realizava.

 

Éramos a geração de jovens que escapava das amarras e se jogava na vida desenfreadamente, tentando recuperar todo o conhecimento negado e as oportunidades tolhidas pela censura e controle social do qual acabávamos de nos libertar.
Vivíamos tudo com muita intensidade e paixão, desenfreadamente.
De repente, eis que chega da ensolarada Califórnia, o apocalipse.
Dessa vez, batizada de “peste gay”, o HIV trouxe o pânico e o desespero, acenando com uma morte lenta, dolorosa e solitária, com um intenso viés messiânico de castigo divino para aqueles indivíduos transgressores das lógicas morais instituídas.
Vi amigos morrendo cotidianamente!

 

O diagnóstico da AIDS era uma sentença de morte!
Engajei-me nos grupos de apoio que surgiram para levar atendimento básico a uma leva de homossexuais, banidos de suas famílias, trabalhos e convívio social, marcados pelo signo da peste, literalmente jogados ao relento para aguardar o desfecho final.
Vi crianças, filhos de pais contaminados, trancafiados em galinheiro por familiares apavorados com o risco do contágio.
Vi jovens expulsos de seus lares, abandonados à própria sorte, por quem os deveria acolher. Vi a dor e o preconceito, embasados por discursos nacionalistas e religiosos, transformando em párias pessoas que até então engrossavam a massa trabalhadora e consumidora.

 

Em pouco tempo, o vírus revelou que não tinha alvo específico, passando a se manifestar em outros segmentos da sociedade, mostrando que os vírus trazem entre tantas características, a de serem totalmente democráticos.
Hoje, mais de 3 décadas após o advento da AIDS, embora continue a infectar e matar em número alarmantes, o fato de ter tratamento que minimiza sua ação, fez com que a sociedade aprendesse a conviver com essa epidemia, que na realidade nunca foi debelada, apenas controlada.

 

Enfrento agora uma terceira onda virótica, totalmente diferente das duas anteriores pelas quais passei. Sua forma de contágio a torna única e aterrorizante.
A maneira rápida e incontrolável com que evolui para a letalidade é apavorante.
A necessidade do isolamento social como única forma de evitar sua disseminação a torna polêmica e desafiadora.

 

Questiona a nossa estrutura social, o nosso sistema econômico, os nossos hábitos culturais. Nos atinge com força e sem piedade, democrática em sua virulência, injusta em sua prevenção, pois evidencia as regalias dos que podem abastecer suas despensas e recolher-se em isolamento preventivo diante dos que nem uma casa possuem para cumprir as determinações.

 

Nos aponta de forma incisiva e clara que a nossa sociedade está falida.
Que apesar de toda nossa evolução moral e tecnológica, ainda vivemos em um sistema socialmente injusto, onde a minoria que detém o poder e a riqueza encara o restante da população como mão de obra necessária mas descartável, considerando natural que muitas vidas pereçam desde que seu status quo seja mantido.

 

Mari Polachini é Engª Agrônoma, vegana e ativista socioambiental.

Presidenta do MoCAN – Movimento Contra as Agressões à Natureza.

Secretária Executiva do CONDEMA de Peruíbe-SP.

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