Dando Nome aos Bois

BR-319: Há indícios de fraude em rodovia na Amazônia

"O vice-presidente da República Hamilton Mourão (Republicanos) chegou a afirmar que comeria a boina de seu uniforme se a rodovia BR-319 não fosse pavimentada ainda em 2020" - Pedro Ladeira/Folhapress
“O vice-presidente da República Hamilton Mourão (Republicanos) chegou a afirmar que comeria a boina de seu uniforme se a rodovia BR-319 não fosse pavimentada ainda em 2020″Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

No dia 7 de outubro, aqui em Ecoa UOL, denunciei as tentativas do Ministério da Economia em legalizar terras griladas às margens da rodovia BR-319 que liga Porto Velho no estado de Rondônia, região do arco do desmatamento Amazônico, até Manaus, no estado do Amazonas onde a floresta ainda é quase intocada. As invasões de terras públicas e terras indígenas foi comprovada por artigo científico publicado no periódico Land Use Policy, revista científica especializada em mudanças de uso da terra e conflitos fundiários.

A rodovia BR-319 foi abandonada na década de 1980 pela falta de trafegabilidade, uma vez que o transporte por balsas e barcaças é muito mais barato, eficiente e seguro que a estrada. Entretanto, em 2014, ainda no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), uma nova promessa de repavimentação deu início a manutenção da rodovia há muito esquecida, o que fez com que o desmatamento aumentasse na região. Desde 2015, ano do início da manutenção da rodovia, o desmatamento na região tem atingido recordes ano a ano. A BR-319 foi uma das promessas de campanha do Presidente Bolsonaro (PL), sendo que em algumas declarações, o presidente afirmou que teria escolhido uma boa equipe do IBAMA para aprovar o processo de licenciamento da rodovia sem entraves e iniciar de uma vez por todas a etapa de asfaltamento do empreendimento que corta a Amazônia. O vice-presidente da República Hamilton Mourão (Republicanos) chegou a afirmar que comeria a boina de seu uniforme se a rodovia BR-319 não fosse pavimentada ainda em 2020. Tanto as falas do Presidente da República como do Vice-presidente, indicam que as intenções atuais do governo federal em pavimentar a rodovia a todo e qualquer custo, superam as especificidades técnicas que o empreendimento demanda.

O DNIT, órgão responsável pela manutenção e pavimentação da rodovia BR-319, chegou a descumprir uma decisão judicial transitada em julgado, onde não cabe recurso de que antes da licitação para pavimentação do “Lote C” da rodovia, deveria ocorrer a consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual o Brasil é signatário e os estudos ambientais como estabelece a legislação brasileira. A revista científica Science, um dos maiores e mais respeitados periódicos científicos do mundo, classificou a ação do DNIT e do governo federal como catastrófica para a Amazônia, além de apontar que a rodovia é uma ponta de lança que penetra um dos blocos de floresta mais conservados, dando acesso a região a madeireiros ilegais e grileiros de terras.

Durante a pandemia de covid-19, invasões à terras indígenas se intensificaram na área de influência da rodovia BR-319, como demonstrado por artigo científico publicado pela Land Use Policy e pelo menos outros dois artigos publicados no periódico DIE ERDE, um dos periódicos mais antigos do mundo, que é editado pela Associação Geográfica de Berlim. Os estudos da DIE ERDE apontaram uma série de violações dos diretos dos povos indígenas no processo de licenciamento do empreendimento. Em um segundo estudo, também publicado na Land Use Policy e que teve como coautor um ex-presidente da FUNAI, foi apontado que pelo menos 63 terras indígenas oficialmente reconhecidas pelo governo federal, e pelo menos uma população de indígenas isolados são impactadas pela rodovia BR-319, afetando pelo menos 18 mil indígenas que foram excluídos do processo de estudos do componente indígenas que deve ser apresentado junto ao estudo de impacto ambiental, além das consultas prévias, livres e informadas como estabelece a convenção 169 da OIT. Em reunião promovida pelo Ministério da Economia em que pude participar, funcionários da FUNAI afirmaram falsamente que as consultas prévias, livres e informadas haviam sido realizadas, sendo desmentidos tanto por pesquisadores como pelo procurador do Ministério Publico Federal, Fernando Merloto Soave, no momento da reunião.

Mesmo com o avanço das invasões a terras indígenas no meio da pandemia de covid-19, o IBAMA decidiu marcar as audiências públicas para apresentação dos estudos ambientais, o que ocorreu em setembro de 2021 sem a presença dos indígenas impactados. O Ministério Público Federal (MPF) chegou entrar com uma ação para suspender as audiências sob a justificativa da necessidade de presença dos povos afetados, entretanto a tutela cautelar conseguida judicialmente pelo MPF foi derrubada pelo desembargador federal I’talo Fioravanti Sabo Mendes, sob a “justificativa” da rodovia BR-319 ser imprescindível para o transporte de insumos médicos para Manaus durante a pandemia. A justificativa de que a rodovia BR-319 seria uma rota essencial para o transporte de insumos médicos para Manaus é falaciosa e foi contestada por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) em artigo científico publicado no Jornal of Public Health Policy, um dos periódicos de saúde pública mais conceituados no mundo.

O promotor do MPF Rafael Rocha, mesmo procurador que judicializou as audiências públicas que excluíram os afetados pelo empreendimento, também havia requisitado formalmente ao INCT-CENBAM (Centro de Estudos Integrados da Biodiversidade Amazônica), que faz parte do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), uma avaliação técnica dos estudos ambientais do trecho do meio da rodovia BR-319 realizados pelo DNIT. O coordenador do CENBAM e pesquisador do INPA, Dr. William Magnusson, respondeu o oficio com análise dos estudos ambientais da rodovia BR-319, apontando que os estudos foram deficientes na amostragem de fauna, havendo ausência de amostragens na estação seca, sendo que sequer o estudo fazia menção a várias espécies endêmicas que ocorrem ao longo da rodovia BR-319, ou seja, espécies de animais de ocorrem exclusivamente em áreas próximas da rodovia BR-319 não apareciam no estudo de impacto ambiental. O relatório do pesquisador também apontou que era deficitário os estudos de impacto sobre os igarapés e o lençol freático da região.

Apenas a manutenção realizada pelo DNIT tem assoreado vários corpos d’água impactando a região. Indígenas que moram no Lago do Capanã Grande, no município de Manicoré, apontaram que igarapés têm sido aterrados pelo DNIT, incluindo igarapés que desaguam no Lago do Capanã Grande. O Cacique Adamor Mura, da etnia Mura, indica que devido ao aterramento destes igarapés a água do Lago do Capanã se tornou mais quente, imprópria para o consumo e que a pesca foi afetada. O Cacique apontou que uma das consequências dos impactos ambientais da rodovia foi o aumento de casos de malária na comunidade. Dados da Secretária de Endemias de Manicoré, de fato apontam um aumento crescente de casos positivados de malária para o município a partir de 2015, ano de início das manutenções realizadas pelo DNIT.

O relatório emitido pelo coordenador do CENBAM e pesquisador do INPA, Dr. William Magnusson, claramente aponta as deficiências dos estudos ambientais apresentados pelo DNIT, além disso recomendações do próprio IBAMA foram ignoradas pelo presidente do órgão Eduardo Fortunato Bim, que concedeu a licença prévia para pavimentação do trecho do meio da rodovia BR-319.

As ações do presidente do IBAMA em conceder a licença prévia sob estas condições e o fato de agentes da FUNAI mentirem sobre a consulta dos povos indígenas demonstra uma tentativa de avanço das obras da rodovia BR-319 mesmo sem os requisitos mínimos do processo de licenciamento ambiental, indicando uma fraude de todo o processo para atender as expectativas do governo Bolsonaro em abrir a região para grileiros e madeireiros, como já mostrado aqui em Ecoa UOL.

Desta forma, tanto o presidente do IBAMA, Eduardo Bim, como os agentes da FUNAI que atestem falsamente que as consultas dos povos indígenas foram realizadas, devem ser afastados de suas funções imediatamente e devem responder criminalmente por infringir os artigos 66 e 67 da Lei n° 9.605/98 que firma o seguinte: “fazer funcionário público afirmação falsa ou enganosa, ou omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimento de autorização de licenciamento ambiental” e “conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais”

É crucial neste momento que o Ministério Público Federal tome medidas para anular a licença prévia concedida pelo IBAMA, bem como o novo governo do Presidente Lula atue contra a atual politica anti-ambiental instituída pelo governo do presidente Bolsonaro. Um estudo publicado nesta terça-feira, dia 9 de novembro, no periódico cientifico Conservation Biology, o mais importante periódico de conservação do mundo, apontou que o desmatamento da Amazônia já afeta as chuvas que mantêm a biodiversidade, abastecimento humano e agricultura das regiões sul e sudeste do Brasil, sendo a rodovia BR-319 um empreendimento catastrófico para esse ciclo hídrico vital para o Brasil.

Por Lucas Ferrante colaboração para Ecoa.

Compartilhar