Por Bruno Fracchia.
No último dia 17 de dezembro, no SESC-Anchieta, chegou ao fim a temporada de “Dilúvio”, a mais nova obra de Gerald Thomas. Uma destas pérolas que o teatro às vezes recebe, esta peça reafirma a singularidade das criações do encenador e a necessidade de suas montagens no cenário artístico brasileiro. Em tempos de tantos ataques à arte, “Dilúvio” se fez (e faz) um teatro necessário.
Graças a algumas reações (minoritárias) de crítica e público, é possível observar como o teatro de Gerald possibilita um desnudamento de posições retrógradas da parte de alguns espectadores e análises críticas que revelam visões de mundo deslocadas desconectadas de nosso tempo, anteriores até mesmo aos anos 80, quando o encenador apareceu com suas obrass no Brasil e a crítica teatral bateu muita cabeça. Foi preciso Silvia Fernandes, a maior teórica teatral brasileira, debruçar-se, com sua típica honestidade intelectual, sobre a obra do artista para o véu do estranhamento ser arrancado. Passados 30 anos, é espantoso que alguns críticos profissionais ainda busquem analisar suas peças segundo cânones obsoletos, como unidade de ação, encadeamento dramático, personagens, etc. Estes profissionais acabam por prestar um desserviço, só comprovando sua falta de diálogo com o público e o descompasso entre crítica e prática teatral. Mas este é tema que deve ficar para análise em outro texto. Neste, o protagonista é “Dilúvio”.
Como aponta André Bortolanza, no programa do espetáculo, o dilúvio está na bíblia e em diversas mitologias, podendo ter diversas significações. Gerald Thomas escolhe as suas, mas, como característico em suas obras, não procura impor ao público uma única possibilidade de leitura. A que dilúvio a peça se refere? Ou, parafraseando uma das perguntas da peça, a qual Diógenes? O que é dilúvio? Quem é Diógenes?
As respostas a estas questões não são importantes, o que pode perturbar àqueles que esperam que uma peça teatral apresente respostas e também àqueles que possuam visões de mundo (e de teatro) imutáveis (algo contrário à própria vida, que é movimento). No entanto, assim como no Pós-2ª Guerra Mundial, que tanto marcou as principais referências de Thomas, não vivemos em tempos de respostas prontas. Vivemos em tempos de buscas. De respostas possíveis. E este Dilúvio pode funcionar como uma excelente parceira para àqueles que vivem esta busca por uma melhor compreensão e relação com estes tempos que vivemos.
Há algo que muito me encanta nos trabalhos de Gerald Thomas (em especial em peças onde o diálogo não está em primeiro plano): a sua concepção de espetacularidade.
Remetendo ao Gesamtkunstwerk wagneriano, o conceito da obra de arte total está presente em “Dilúvio” na trilha sonora e no canto de Vivalda Dula, no desenho de luz de Wagner Pinto, no bailado das coreografias aéreas, na plasticidade das imagens construídas, nos desenhos que passeiam pela cena, nos textos que são ditos pelas atrizes (como se fossem a palavra soprada de Artaud). Todos os aspectos da cena são pensados e executados com rigor para, ao invés de amarrar uma exigência de compreensão única, dar ao público a LIBERDADE da criação de sua própria leitura.
Ainda que não intencional, nesta escolha pela leitura aberta, estabelece-se uma ação efetiva de formação de público. Acredito que se as novas gerações, que já há muito recusam os modelos tradicionais de ensino, recepção e fruição, tivessem não apenas acesso ao teatro, mas a esta forma teatral, certamente teríamos plateias mais jovens e mais cidadãos com pensamentos não padronizados pelo senso comum (o que me dá esta certeza é a educação do público escolar que presenciei na plateia na segunda apresentação em que estive, bem como os comentários destes ao final do trabalho).
O símbolo diluviano carrega uma ideia de destruição para a construção. Como certamente foi o processo de ensaios desta montagem, com o diretor se portando como um maestro, regendo o levantamento, recusas, construções e reconstruções de cenas e escolhas finais do espetáculo. Tratando-se de um trabalho de Gerald Thomas, este procedimento criativo não poderia ser diferente. Alguém que, em sua juventude artística, trabalhou e conviveu com Judih Malina e Julien Beck, fundadores do Living Teathret, e que teve próxima relação com Samuel Beckket, não criaria jamais a partir de formas pré-definidas por teatros do século retrasado. Em “Dilúvio”, Gerald novamente consegue uma conciliação muito difícil e característica de seu teatro: a reverberação de grandes gênios das artes e uma linguagem autoral.
Nesta reverberação de grandes expoentes contemporâneos, o diretor leva adiante todo um legado artístico, demonstrando uma gratidão a mestres que lhe abriram (direta ou indiretamente) portas e ideias. Assim é que leio, por exemplo, a menção cenográfica à Roda de Bicicleta, de Marcel Duchamps, e o diálogo com o teatro de Tadeuz Kantor (estabelecido com a presença do diretor em cena e com certo tom confessional da obra). Há ainda um diálogo maior que é desenvolvido com Samuel Beckket, a maior referência teatral de Gerald. O dramaturgo irlandês, que radicalizava suas criações cada vez com maior intensidade, talvez hoje desenvolvesse obras semelhantes à “Dilúvio”. Enxergo como se Gerald Thomas fosse uma espécie de continuador das pesquisas de Beckett, não repetindo seu mestre (porque então seu teatro seria morto), mas levando suas pesquisas formais adiante. E é então que temos Arte.
E neste diálogo, uma das cenas mais marcantes da peça é a da metalinguagem com “Esperando Godot”. Os mendigos Vladmir e Estragon se transformam em duas amantes (as performers Lisa Giobbi e Julia Wilkins), sendo assistidas por um Pozzo (na magistral atuação de Maria de Lima), em cima de uma carroça puxada pelo Lucky da vez (Beatrice Sayd). Pozzo clama pelo entretenimento e as mendigas/anjos/amantes estabelecem um balé aéreo que se transforma numa sátira as lutas de super-heróis, atual epidemia da mais famosa indústria do entretenimento.
Este clamor pelo entretenimento permite novos paralelos com o pós-2ª Guerra (quando os artistas tinham necessidade da busca por novas formas de expressão para tentar dar conta de questões que as palavras em sua forma tradicional não conseguiam) e é também uma característica deste novo mundo diluviano, identificado por Gerald.
Composta por diversas cenas, a peça tem na ideia do Dilúvio o seu princípio organizador. E o novo tempo diluviano está na anestesia do grande público, hipnotizado pela indústria cultural dos super heróis, na presidência de um Donald Trump (“ainda temos três anos pela frente”, relembra Gerald em áudio da peça), na violência do ditador norte-coreano Kim Jong-um, nas fake news que ameaçam processos eleitorais, na popularização do Google como ferramenta de busca de informação (em detrimento das pesquisas sérias e dos estudos acadêmicos), O novo tempo diluviano está também na solidão contemporânea (escondidos, procuramos por alguém que nos ame, como grita Maria de Lima, em pungente e visceral cena). E o dilúvio, mesmo que em tempos de guerra, traz também a esperança. Esta é a mensagem que fica.
Para uma proposta intensa, com encenação impactante, como esta, é fundamental um elenco afiado e afinado com as propostas da direção. E as atrizes escolhidas por Gerald são estas mulheres exigidas para este trabalho, dando a ele uma unidade de grupo teatral, sem qualquer tipo de desnível entre as interpretações. Neste ponto, mais um espanto que gera uma pergunta: porque um elenco afinado e intenso como este é ignorado em todas as listas de melhores elencos do ano?
Nas coreografias aéreas, Julia e Lisa constroem um espetáculo dentro do espetáculo. As perfomers dão uma pontuação própria na musicalidade da peça, com quebras de ritmos que instauram novas atmosferas. As artistas norte-americanas passam por entidades angelicais, com vigor de adolescentes e a tranquilidade de senhoras de seus ofícios.
Definições semelhantes podem ser utilizadas para se falar de Maria de Lima, atriz que me impressionou desde a primeira vez em que a asssiti, na peça “Gargólios”, ampliando minha admiração nos ensaios e apresentações de “Entrendentes”, novamente surge como potente força lapidada. Seu domínio de palco, expresso já com sua simples presença em cena, é potencializado por seu domínio técnico e justeza de sua ações. Maria também é uma condutora do ritmo da obra, modulando voz, energia, comandando quebras e mudanças rítmicas, que trazem nuances a sua interpretação e ao próprio “Dilúvio”. Uma unanimidade do público, impressionando a todos àqueles que ainda não conheciam o seu trabalho e que saem encantados com a “atriz portuguesa”. Uma das grandes atuações do ano de 2017 e muito me estranha não estar entre as indicadas dos prêmios deste ano.
E nessa montagem intercontinental, as brasileiras também são pura intensidade e imprescindíveis para a concretização das ideias de Gerald. Ana Gabi e Beatrice Sayd corporificam cenas de grande impacto, do começo ao fim da peça, potencializando a obra com suas entregas absolutas. Asseguradas em suas técnicas é que estas intérpretes se transmutam em personagens diferentes de forma a não serem identificadas com as criações de suas entradas anteriores.
Beatrice, presente na intertextualidade com “Esperando Godot”, também tem destaque em outra importante cena. Dando vida a uma colegial que procura pelo pai (já morto) numa zona de guerra, sem psicologismo, na base das ações físicas e de técnica vocal, ela transmite todo o desespero da situação, ajudando ao público na criação de diversas imagens. Nesta cena está ainda a seu lado outra das forças da peça, Isabella Lemos, atriz que, realmente a serviço de suas personagens, engrandece no papel, abdicando de qualquer exibicionismo à serviço de colocar suas personagens em primeiro plano Para mim, que não a conhecia, foi necessário um longo tempo para reconhece-la fora do palco. Assim deveria ser o trabalho de toda intérprete.
“Dilúvio” não é obra hermética, criação para iniciados, viagem insólita do diretor dentro de seu mundo. “Dilúvio” pede apenas espectadores que estejam no teatro como postura receptiva (como normalmente deveríamos estar na vida). Aos críticos, espectadores e artistas que tentam (em vão) diminuir esta e qualquer outra obra, simplesmente porque não se alinham a sua estética teatral, registram-se as palavras de Danilo de Sousa Miranda no programa de “Dilúvio”: “tão importante quanto o espectador fruir uma obra de arte está a sua capacidade questionadora de provoca-lo e deslocar-se do lugar-comum em direção a uma perspectiva diferente do que já tem”.
Ao diretor, as atrizes da montagem, aos contra-regras (imprescindíveis nos bastidores) e ao SESC-São Paulo, meu muito obrigado!