Geraldo Varjabedian

Metafísica da Taioba

Sou um cara que chegou até aqui entre escolhas e absoluta falta de escolhas. No caminho, abandonei a busca pela normalidade, abri mão de ser amado pela utilidade, aprendi a desaprender… Entendi três coisas fundamentais sobre o mercado: que o capEtalismo só funciona pela negação do óbvio, que nada é mercadoria até que alguém se aproprie, e que almoço grátis existe, sim! e é o melhor rango do mundo… Trouxe na mochila poucos trajes: fraque roto de escritor independente, truques de poeta visionário e uns tantos desapegos de ativista e educador socioambiental focado em temas como Consumo Crítico, Não-Consumo, Mudança de Hábitos, Soberania Alimentar, PANCs e outros incômodos dirigidos às classes cúmplices da barbárie econômica. De resto, tenho predileção por seres que reluzem a vida. Coisas e gente que vive em função de coisas me dão um tédio irremediável!

Imerso em poucas roupas, seguia beirando a mata. Barro, entulho molhado, piso de chinelos a antipática mescla. Essa gente despeja qualquer coisa em qualquer lugar: lâmina de roçadeira; porta de geladeira; lateral de berço banguela. Balde rachado e cadáver de boneca. Restos de tudo… Paro. Uma pinguela dá em nada. Mata fechada… Volto. Escorro pelos chinelos. Os cílios pingam. Linhas geladas de vento bordam frio na camiseta. Bicicleta apoiada na árvore… Monto. Arranco e sigo procurando um verde entre tantos. Converso com a fome até que vejo o mamoeiro repleto de frutos verdes. Vara de bambu. Alguém já esteve aqui. Ergo e bato: sons surdos, dois mamões graúdos ao chão… Apanho. Os frutos machucados melam as mãos. Fome. Mãos macias de papaína, os dedos enrugados, agarram a espuma encardida do guidão. A esfera do rolamento range… Levanto-me. De pé sobre os pedais, livro peso da traseira antes que a vala me engula.A bicicleta para – a perna escora… Medro. Líquida de outra densidade, uma cobra verde divide a água. Sua essência senoidal cresce. Foge. Encolhe e finge esticar. Some. Seu dorso emerge, mas não a vejo mais. O chinelo escapa. A sinuosa e meu pé, incógnitos… Paraliso. Sem memória de fome, murmuro: – “Nada de medo, garoto! Já fizemos o acordo: temos medo, trepidamos o coração de sapo, mas não podemos… Cobra é cobra. Depois, você treme, se caga, chora. Agora, encontre seu centro! Vamos!”… Míope de instinto, descalço de um pé; afogo a mão sob a água e apanho o chinelo… Monto. Mão de barro no guidão. Desatolo dali, da cobra, do frio e do medo… Pedalo. Cada vez há menos comida por essas bandas. Essa gente doente desmata tudo. Quem come placa de imobiliária? Quem come escrituras? Há poucos anos, uma volta no quarteirão e pronto: Banana! Pariparoba! Jurubeba! Pitanga! Araçá! Açafrão! Gravatá! Assa-Peixe pra fritar! Caruru pra refogar!… Suspiro. Do outro lado da vala, monjolos verdes. As taiobas dizem sim, transbordam… Atravesso. A vala me engole. A fome conduz as mãos ao renque. Arrancadas pela raiz, nada mais dizem as taiobas… Penso. Para casa! Tutu de taioba e mamões verdes cozidos, basta… No cesto da bicicleta as taiobas voam, debatem-se sem pedir socorro. Ao rancho!… Entro. O dossel da mata aplaude com vento e chuva, minha bagunça me abraça. Estou em casa!  Dispo a placenta de tecido… Ardo. A recompensa tem cheiro de roupa seca. Moldo a cabeleira sobre o crânio e a amarro na nuca. Piso firme em direção ao fogão de pedras… Estanco.  É urgente parir fogo. Galhos, folha seca de embaúba, teco de jornal venal… Isqueiro molhado. A caixa de fósforos guardada dispensa a prece do agnóstico. Lá vai o fogo! Fumaça de lenha em tarde de chuva: perfume do meu mundo… Sinto. O aguaceiro emudece o coração. Manto verde confortável. Sapo sob a taioba. Medito? É um transe? Quem é esse homem que o verde amansa?… Deixo-me beber pelo som da chuva. Espírito? Não, seiva!  Sou sapo ou taioba? Eu me protejo. Cuido de mim. Caço a mim nas fomes. Sou um naco remanescente de restinga coachando contra os tratores… Não sou príncipe, coisa alguma. Sou um homem que quer um beijo. Não qualquer beijo: sou um homem que caça taiobas na chuva e extermina fomes; quero beijo à altura!… Taioba não se come crua, não! Quem me quiser deve ter cuidado: trago o oxalato do sarcasmo à flor da pele. Só ao fogo e afagado viro príncipe. Refoga-me em ti – as folhas, as nervuras, até o talo… Juro! Torno-me palatável, saboroso, nutritivo. Eu a sacio, mas careço de preparo, mulher. Devora-me cru e fecho-lhe a glote… Desperto. As folhas escurecidas jazem murchas na panela… Sorrio. Abraçado ao pote de farinha, fervo os mamões picados numa lata. Preparo meu tutu de taioba como quem reinventa a cozinha… Cismo. Para onde foi a alma da taioba? O fogo a amansa?… Degusto, afinal! Alimento gratuito. Meus olhos vidram na mata… Protegido… Alimentado… Aquecido… Ouço. A areia em rios, as narinas escorrendo, batalhões e repiques de gotas… Volto à panela preta. Sirvo-me do resto… [Que cansaço extraordinário!]… Oro. A gratidão trepida o coração agnóstico. Olho para cima, ainda uma vez, antes de escurecer. A mata é catedral. É mãe. E escorre seu leite transparente na boca dos que são de seiva… Duvido. Sou sapo, taioba ou o quê? A fome incompleta as pessoas. Se for taioba, fome é homem; se for sapo, é cobra. Atiça medos. Enrosca-se nos tornozelos… Contemplo. Respiro a umidade, a luz rosada. O noticiário dos sapos está no ar… Escuto. Ao som do anoitecer, beijo acerolas com o canto da boca e as devoro. Acaricio meus medos exaustos, apago a luz. Vou a lugar algum… Anoiteço. Penetro a fenda sagrada da tenda. É meu limite. Afofo os travesseiros. Entrego-me. Excito-me. Amo meu corpo longa e suavemente. Não sei se adormeço ou esqueço… Mergulho! Para amanhã, na outra margem da noite, outras fomes: sonho manhã de sol…

 

Crônica vencedora da edição 2015/16 do Mapa Cultural Paulista

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