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Atenção primária à saúde terá novo modelo de financiamento

Proposta aprovada no dia 31 de outubro pela Comissão Intergestores Tripartite passa a valer já em 2020. O novo modelo fará com que o repasse de recursos aos municípios considere o número de usuários cadastrados nas equipes de saúde e o desempenho das unidades
Por Julia Neves, Katia Machado – EPSJV/Fiocruz | 01/11/2019 12h44 – Atualizado em 11/11/2019 10h38

Após 22 anos, o Ministério da Saúde mudará a forma do financiamento da atenção primária à saúde. A nova proposta foi aprovada no dia 31 de outubro, durante reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), que reúne além da Pasta, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). O modelo, que começa a valer a partir de 2020, fará com que o repasse de recursos aos municípios considere o número de usuários cadastrados nas equipes de saúde e o desempenho das unidades, a partir de indicadores como qualidade do pré-natal, controle de diabetes, hipertensão e infecções sexualmente transmissíveis.

Para entender o que muda, porém, é necessário saber como funcionou esse financiamento até agora. Em 1997, foi criado o PAB, sigla para piso da atenção básica, transferido do Fundo Nacional de Saúde aos municípios de forma regular e automática. Mas o PAB é composto por dois componentes. O PAB fixo chega a todas as 5.575 cidades brasileiras, sem exceção, e varia de R$ 23 a R$ 28 por habitante, dependendo das características socioeconômicas de cada uma. Já o PAB variável tem basicamente uma missão: induzir os gestores a adotar e ampliar a Estratégia Saúde da Família (ESF). Para isso, o componente é repassado mensalmente segundo tipos, números de equipes implantadas e composições profissionais previstas.

Durante a reunião da CIT, o secretário da Atenção Primária da Saúde do Ministério da Saúde (SAPS/MS), Erno Harzheim, argumentou que se a nova proposta causa algumas insatisfações, ela fortalece a atenção primária, por ser “fácil, simples e factível”. “Trata-se de uma proposta calcada em critérios científicos e técnicos”, garantiu. O novo financiamento, segundo ele, tem como propósitos valorizar a responsabilização das equipes de Saúde da Família pelas pessoas e estimular o aumento da cobertura real da APS. “Poderemos ter 145 milhões de pessoas cadastradas na atenção primária. Até o dia 30 de abril, havia 87 milhões de pessoas cadastradas. Ou seja, são milhares de pessoas que hoje estão excluídas, pessoas em situação de vulnerabilidades”, disse. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reforçou: “Nós iremos começar a medir a atenção primária. Sem medir, você não transforma”.

O professor da Universidade de São Paulo (USP) Áquilas Mendes discorda. Para ele, a proposta de mudança no financiamento rompe com o caráter universal do SUS, criando o princípio da seletividade na atenção à saúde. “Vejamos que isso, na sociedade capitalista, é incentivado pela atribuição de maior alocação de recursos para uma determinada e segmentada população. Sabemos que o ‘financeiro’ pauta o social e orienta a maior preocupação dos gestores no contexto de desfinanciamento do SUS com a Emenda Constitucional 95 – que congelou o gasto público por 20 anos”, explica. O economista calcula que, desde 2017, as perdas acumuladas para o Sistema com a EC do Teto dos Gastos já alcançou cerca de R$ 29 bilhões.

“Além disso, no contexto de uma profunda crise capitalista que vem assolando o mundo e o Brasil desde 2014, a arrecadação das receitas públicas vem declinando de forma intensa, em especial nos municípios. Imaginem que o novo modelo de financiamento proposto intensifica essa depressão e as condições de incerteza, na medida em que termina com o PAB fixo, um recurso per capita seguro, que permite que as secretarias municipais planejem a política de saúde”, lamenta.

Outro problema identificado por analistas é que o financiamento por habitante, via PAB fixo, permite fortalecer uma série de ações que vão muito além da prestação de serviço biomédico na unidade básica de saúde. “A nova proposta dificulta o fortalecimento das visitas domiciliares, prejudica a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde”, lista Leonardo Carnut, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que, junto com Áquilas Mendes, pegou papel e lápis e calculou o quanto isso pode impactar algumas cidades. “Estimamos que, com as mudanças, 78 cidades vão perder dinheiro – nada menos que uma soma de R$ 417 milhões, ou 62,9% do que receberam em 2018”.

Segundo Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e integrante do comitê gestor da Rede APS, que vem acompanhando de perto as discussões, o pagamento por captação ponderada  tem tudo para gerar consequências drásticas. “Significa que os municípios terão que renunciar à única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente e que pode ser aplicada com autonomia – e isso certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal”, aponta.

Mas, para os críticos, não é só de números concretos que se trata, mas de princípios. Para Carnut, por mais que se tenha uma construção política e institucional de um ‘SUS para todos’, a partir do momento em que o governo decide ligar os recursos da atenção primária ao critério de captação de pessoas, “deixa claro que não quer mais um SUS para todos”. E isso, na opinião do professor da Unifesp, é um retrocesso a uma visão seletiva da atenção primária. “A proposta do Ministério entende a atenção primária como serviços para os mais pobres que não têm condições de consumir planos de saúde ou via desembolso direto”, critica. Mas além de restringir a concepção de universalidade, Carnut acredita que a mudança também é uma forma de o governo incentivar o mercado privado. “Não é à toa que a proposta dos ‘plano acessíveis’ antecedeu este esquema de alocação”, relaciona, citando uma proposta do ex-ministro Ricardo Barros, ainda no governo Michel Temer.

Marco zero

Uma síntese da nova proposta de financiamento para a atenção primária foi apresentada pela primeira vez no 15° Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, realizado em julho, em Cuiabá. Meses depois, durante uma audiência pública na comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, no dia 1º de outubro, Erno Harzheim apresentou os argumentos da Pasta para realizar a mudança. Segundo ele, existe um ‘gap’, ou seja, uma lacuna entre o dinheiro que se aplica em saúde e o que a população tem de retorno. “Em 2014, os gastos [federais] estavam em R$ 22 bilhões e, se fizermos projeção de 15 anos, vamos ter quase R$ 1 trilhão perdido em ineficiência que poderia ser dirigido para maior entrega de serviços de saúde para a população”, afirmou. Ele disse ainda que, só em 2016, mais de R$ 2 bilhões foram gastos pelo governo federal com internações evitáveis.

Na reunião da CIT, dia 31, o Ministério destacou que o novo modelo prevê incentivos na informatização das unidades de saúde, nas residências em Medicina de Família e Comunidade, Enfermagem e Odontologia, na promoção e prevenção à saúde e no cuidado das populações em contextos específicos, como os povos ribeirinhos e indígenas. Harzheim explicou ainda que se trata de um modelo misto de financiamento, pautado em três critérios: captação por ponderação, pagamento por desempenho e incentivo a ações “específicas e estratégicas”.

Ele explicou que a captação ponderada vai atrelar a transferência do recurso federal a cada pessoa cadastrada na plataforma e-SUS no âmbito da ESF. E isso vai levar em conta alguns critérios. A vulnerabilidade socioeconômica é um deles, nomeadamente, o número de cadastrados recebendo Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos. Outro critério é a idade, especificamente o número de crianças com até cinco anos e de idosos a partir de 65 anos. Tem mais: o governo federal vai olhar para o tamanho e distância da cidade, segundo a classificação dos municípios na tipologia rural-urbana do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O pagamento por desempenho, segundo o secretário da SAPS, será baseada em indicadores selecionados conforme a relevância clínica e epidemiológica e o que ele chama de “relevância de processo e resultados intermediários e globais” das equipes. Mas na avaliação de Áquilas Mendes, em nenhum momento se especifica que indicadores são esses. “Aqui o nível de incerteza é grande. A inspiração deste modelo de desempenho é da proposta de alocação de recursos desenvolvida no sistema de saúde inglês desde 2008, que, aliás, avança substancialmente, para um processo de mercantilização”, compara. “O pagamento por desempenho poderá implicar em redução dos repasses federais, seja por dificuldades no cumprimento dos critérios, seja por dificuldade de prestar as informações ampliando a desassistência”, ressalta por sua vez Ligia Giovanella.

O terceiro critério do novo modelo de financiamento focaliza ações prioritárias, como o Programa Saúde na Hora, a informatização das unidades de Saúde da Família e a formação e a residência médica e multiprofissional. Entram aqui, ainda, a saúde bucal, os laboratórios de prótese dentária, o Programa Saúde na Escola e a Academia da Saúde e outros programas específicos, como o Consultório na Rua, as equipes ribeirinhas, as unidades fluviais, os serviços de saúde de microscopistas e prisionais e a Saúde do Adolescente.

O novo modelo estará valendo em 2020. Segundo o Ministério, com base no primeiro critério da captação ponderada, os municípios receberão 100% dos recursos – como se todos os usuários estivesses cadastrados – por quatro meses, passando a receber a partir do segundo quadrimestre pelos cadastros alcançados. As cidades também vão receber um incentivo per capita de transição, valor fixo de base populacional, por 12 meses. E, quanto ao critério de pagamento por desempenho, os municípios receberão recursos segundo a certificação do 3º ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) por oito meses. “A partir do terceiro quadrimestre, receberão pelos resultados dos indicadores alcançados. Neste momento, vale para todas as equipes implantadas”, informou Harzheim. Segundo ele, a previsão é de que a medida turbine o volume de recursos de atenção básica repassado à maioria das cidades. O total de aumento previsto é de R$ 2,6 bilhões. O valor virá de recursos hoje disponíveis, mas não utilizados. Outros municípios, porém, podem ter o volume de recursos reduzido.

Ao anunciar que o Conass está de acordo com a nova proposta e, portanto, é favorável à pactuação da nova política de APS, o presidente do Conselho e secretário de saúde do estado do Pará, Alberto Beltrame, destacou que se trata de uma política “corajosa”, que corrige muitas deficiências. “Permite trabalhar a APS não como porta de entrada, mas como fio condutor, com adequado conhecimento da clientela cadastrada na Saúde da Família”, disse.

O presidente do Conasems, Willames Freire Bezerra, que é secretário municipal de Pacatuba (CE), também elogiou a iniciativa. “A criação da SAPS já foi uma ousadia. Isso foi muito importante para os municípios”, sublinhou, contando que mais de três mil gestores municipais de saúde foram ouvidos sobre a nova proposta de financiamento da APS. “Levamos uma proposta para ser discutida e aperfeiçoada por quem faz a gestão da APS. E iremos ainda ouvir todos os outros gestores”, destacou. E acrescentou: “Essa proposta permite captar mais recursos para regiões mais vulneráveis, como os municípios do Norte e da Amazônia”.

Entidades se manifestam

Antes da aprovação, entretanto, a medida já vinha gerando polêmica. Segundo Ligia Giovanella, para uma mudança radical como essa, seria necessário testar modelos com transparência de cálculos de estimativas, implementar projetos-piloto em alguns municípios e, a partir daí, fazer  os ajustes necessários. “Não há transparência por parte do Ministério da Saúde, não foram disponibilizados documentos da proposta. Precisamos de diálogo e ação conjunta de gestores, Conasems, Conass, profissionais de saúde, movimentos sociais, Ministério Público e academia, renovando e fortalecendo assim o movimento da Reforma Sanitária, crucial para impedir retrocessos”, disse. Ela observa que, justamente pela falta de documentos concretos sobre a proposta, houve ressalvas de gestores municipais preocupados com o risco redução de recursos.

Para a presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do estado do Rio de Janeiro (Cosems-RJ), Maria Conceição Rocha, seria preciso tornar a proposta mais transparente e concreta para que seja possível avaliar tecnicamente seus impactos. “Nossa sensação é de que a proposta está bem construída, mas ainda estamos muito inseguros em relação a ela, sobre as bases de dados utilizadas, as variáveis, a forma de avaliação e a capacidade de execução da totalidade dos recursos, de forma a garantir um aumento real de verbas”, apontou. Para ela, chama atenção a pressa para a pactuação na CIT. “Primeiro o Ministério precisaria disponibilizar materiais de referência e bases de dados da proposta para podermos avaliar com calma. Outras propostas semelhantes levaram de dois a quatro anos para serem construídas”, compara.

Entidades como a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), a Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em conjunto com outras entidades do Movimento da Reforma Sanitária, assinaram uma carta endereçada ao Ministro da Saúde alertando sobre os riscos da mudança. O documento foi enviado oficialmente e entregue ao chefe de gabinete de Mandetta.  Entre diversos pontos, a carta também critica a forma como se deu a discussão do tema. “O que se conhece são power points apresentados por autoridades do MS”, disseram no texto, evidenciando que esse formato inibe a participação da comunidade e pode gerar equívocos. O grupo diz ainda que a proposta fere o princípio da universalização do SUS ao centrar o modelo de repasses apenas pelo número de pacientes cadastrados, e não pelo total da população que pode ser atendida.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também solicitou, por meio de um ofício ao Ministério da Saúde, o envio da documentação antes que se desse a pactuação na CIT, o que também não aconteceu, segundo Priscilla Viégas, diretora financeira da Associação Brasileira dos Terapeutas Ocupacionais (Abrato) e membro da mesa diretora do CNS. “Não chegou nenhum documento formal. Tudo a que nós tivemos de informação sobre essa proposta foram slides, que sempre mudavam a proposta de uma semana para a outra. Era preciso ter um documento com um embasamento técnico e estudos para se construir um debate”, alertou.

No mesmo dia da aprovação, o CNS voltou a emitir um ofício ao Ministério da Saúde. Dessa vez, orientando que os conselhos de saúde – locais, municipais, estaduais e distrital, entidades, instituições, movimentos sociais e academia incentivem, realizem e ampliem debates sobre as mudanças.

No fechamento desta reportagem, no dia 1º de novembro, começou a circular a minuta da portaria do Ministério da Saúde para concretizar o novo modelo de financiamento.

 

Fonte: EPSJV/Fiocruz

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