“Há no ar indícios auspiciosos de reaproximação entre o progressivo e a MPB. A obra de Amud é uma de suas mais bem estabelecidas comprovações”, escreve Eduardo Guerreiro Brito Losso, professor associado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e bolsista produtividade do CNPq.
No texto o autor aborda o livro de: SIMONACI, Ana Paula; MARQUESINI, Janaina; LICHOTE, Leonardo; ALMEIDA, Paulo; COHN, Sergio. Cadernos de música: Thiago Amud. Rio de Janeiro: Revistas de Cultura Produções Artísticas, 2020.
Eis o artigo.
Sabe-se que, no Brasil, a década de 2010 começou muito bem e terminou muito mal. A opinião pública está tão envolvida com as mazelas do presente que não se permite a pausa necessária de olhar para trás e fazer um balanço dos dez anos passados. No campo da música popular, o ramo de nossa cultura de maior motivo de orgulho, haveria muito o que dizer sobre os principais estilos que granjearam sucesso de público. As declarações de Caetano Veloso sobre o que ele destacaria nos últimos cinco anos têm alternado entre elogiar o funk, por exemplo, e destacar um nome desconhecido da maioria: Thiago Amud. Sertanejo universitário e Thiago Amud. Valesca Popozuda e Thiago Amud. Caetano varia ao falar de um extremo do “leque de possibilidades” da música brasileira, mas insiste em Amud como exemplo do extremo oposto, isto é, de um compositor, letrista, arranjador e músico de alto calibre, que conjuga todos os papéis em uma pessoa só. Como o próprio Amud declarou em entrevista ao jornal O Globo, “Eu tenho que ser o Caetano, o Rogério Duprat e o Torquato Neto”. Repetindo seu nome, Caetano celebra a coexistência das diversas opções.
O tropicalista ressalta o primor das letras e da orquestração, prenhes de toque afetivo, marca autoral e inventividade. Agora o leitor deve estar se perguntando qual é a produção desta revelação do decênio. Amud inaugurou o lançamento de seu primeiro CD, Sacradança, em 2010. O segundo, De ponta a ponta tudo é praia-palma, é de 2013; o terceiro, em conjunto com seus companheiros do Coletivo Chama, Todo mundo é bom, em 2016; o quarto, O cinema que o sol não apaga, em 2018. Vê-se que ele, de fato, preencheu a década com muitas produções autorais, sem contar com várias canções e arranjos para outros cantores.
Tal produção incansável, contudo, não sai de um certo nicho de interessados na nova MPB, que, justamente, a partir do final dos anos 90, sofreu um terrível encolhimento no mercado e motivou a famosa querela sobre o fim da canção. A atividade de Amud se constituiu a partir dessa condição desolada e operou profundamente dentro dela. Apesar do muito bem vindo reconhecimento de Caetano, já antecipado por Guinga, que sem dúvida foi quem descobriu Amud, além de alguns poucos críticos (dentre os quais posso dizer que, desde 2012, eu fui o mais obstinado), é muito difícil furar a bolha. Daí a importância de uma iniciativa que busque tanto introduzir ao público um enorme artista pouco conhecido quanto fornecer leitura crítica qualificada.
A boa notícia é que surgiu a coleção dos Cadernos de música da Revistas de Cultura Produções Artísticas, organizada por Ana Paula Simonaci, Janaina Marquesini, Leonardo Lichote, Paulo Almeida e Sergio Cohn, pessoas que têm feito a inestimável tarefa de dar conta de examinar clássicos e contemporâneos da música popular brasileira com pesquisa de ponta e exame acurado. Trata-se de uma coleção que, só em 2020, já publicou livros sobre Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Elza Soares, Tom Zé, Nara Leão, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, João Bosco, além de nomes novos como Amud. Mais informações, aqui.
Os cadernos são feitos de um ensaio crítico e uma entrevista. Quem assina o ensaio “Cidadoido brasilhado” (trecho da letra de “Autoretrete”, de O cinema que o sol não apaga) é Paulo Almeida, cuja atividade de produtor cultural tem sido essencial para a recepção e divulgação da música recente.
Seu texto acompanha a apresentação e o comentário de cada álbum de Amud, canção a canção (citando algumas letras inteiras, servindo como antologia poética), entremeando detalhes biográficos esclarecedores. Paulo pontua o sentido central de cada faixa e oferece ao leitor um quadro amplo da produção. Já a entrevista contou com Ilessi e Túlio Vilaça, além dos organizadores da coleção, e atravessou fatores biográficos essenciais, como a formação musical vinda do pai (que tocava no violão “Tropicália”), da mãe, o papel afetivo dos últimos momentos da avó, o professor de geografia e o encontro com Guinga no festival Rio Jovem Artista, em 1999.
Amud é o transtropicalista que acorda tais fantasmas do passado, invoca o regonguz e ressuscita o espírito transgressor de uma estranha espécie de vanguarda imbuída de tradição, de uma tradição vanguardista do Brasil profundo – Eduardo Losso
Em seguida, a conversa entra nas questões centrais da inquietação crítica de Amud diante do debate da canção. Primeiro, o papel político das canções mais críticas de Sacradança; segundo, a obrigação de assimilação da moda global, na verdade sempre americana, que impossibilita projetos e leituras estéticas diversas do Brasil. Uma questão está ligada a outra: a primeira se refere ao teor revoltado e irônico de Amud diante de certa “esquerda hipster” que se acomodou numa leitura barata do tropicalismo, cuja resultante na música vive de realizações de sonoridade atualizada mas com frequência de qualidade mediana. Quando à segunda, tal imperativo de modernização, que segue uma regra mercadológica, produz nos meios de produção e divulgação uma recusa de imersões mais radicais no Brasil profundo, carimbando-as como ultrapassadas. Além disso, tal recusa se pauta sempre por uma exigência de ligeireza, leveza e simplificação, invalidando tudo o que cheira a grandes ambições artísticas. A violência tropicalista do passado é filtrada e aguada; outros tipos de projeto (os nomes de Edu Lobo e Sergio Ricardo circulam não como modelos mas apenas exemplos ilustrativos) são sumariamente invalidados. O resultado dessa anulação de possibilidades de um senso comum anônimo, invisível, mas implacavelmente dominante, é justamente o contrário do leque rico de diferenças proposto por Caetano nas entrevistas, onde a função de citar Amud é, precisamente, a de ferir o bloqueio instaurado. E, mesmo assim, deve-se reparar que não são poucos os veículos que fazem o possível para omitir exemplos desse tipo quando Caetano os pretende mencionar. Trata-se de uma máquina que é feita para aplicar operações de apagamento mesmo quando a maior celebridade tenta, com tanta generosidade, burlá-la.
A entrevista se demora, laboriosamente, no mal-estar do tópico, porque é difícil apontar o problema sem ser estigmatizado como rancoroso, elitista, arrogante e Amud é rigoroso, sincero e genuinamente modesto em apontar seu despreparo político em tempos passados para asseverar não ser do tipo que desmerece rap ou funk e não querer ser confundido, de jeito algum, com o atual conservadorismo extremista (que inclusive não é afeito à cultura), pelo contrário, um dos muitos pontos que o livro não toca, por falta de espaço, foi, por exemplo, a crítica que Amud dirigiu, em forma de canção, a Lobão, noticiada pelo jornal O Globo.
Tais questões intrincadas aparecem especialmente em torno do primeiro álbum de 2010, Sacradança. Embora Paulo Almeida tenha esclarecido vários aspectos das canções, não teve como abarcar muitos outros e por isso me sinto convidado a dar uma visão diferente do primeiro disco. Neste CD inicial, as primeiras canções, 1 Pedra de Iniciação e 2 Gnose song (insiro a numeração das faixas para que o leitor se situe em minha leitura do conjunto) propõem um ambiente mítico fundador e fundamental, onde o verso drummondiano modificado, “no meio da pedra tem um caminho”, aponta para o destino do compositor de caminhar por cima dos próprios obstáculos, que tanto intimidam os outros, e enfrentar os revezes do mundo.
Em seguida, há uma seção de três faixas que exibem musas de rica personalidade. 3 “Existe carnaval” introduz uma alegre canção carnavalesca cujo centro é formado de um longo interlúdio instrumental figurando o clima lúdico e cuja letra retrata na praça um “coliseu” dedicado à graça da amada, caracterizada por oxímoros como “Pagã santificada/ Cortesã imaculada”. Eles introduzem as duas outras canções de musas mais explícitamente decadentes: 4 “Inteira, Despedaçada”, outro carnaval, e 5 “Irreconhecível”, samba canção com participação de Guinga. Nelas, percebe-se o tom trágico dominante do disco: são mulheres errantes, perdidas, que vivem em meio ao interesse eventual de homens e o vazio álgido e cruel de sua condição. De certa forma, tal caráter degradado vale como poderosa metáfora do desconcerto do mundo assinalado na estrutura verbal e vocal (alternando a voz de Amud e Armando Lobo) espelhada de “Gnose song”, que já contém elementos luciferinos.
Mas eles de fato se evidenciam nas duas canções centrais do álbum, 6 “A marcha dos desacontecimentos” e 7 “Sal insípido”, mais comentadas no ensaio e na entrevista e, ainda assim, precisarei sublinhar elementos cruciais não colocados. “A marcha dos desacontecimentos” apresenta uma primeira pessoa forte no singular, capaz de “glorificar minha vontade”, desconstruir o mundo e gracejar da parusia, com uma marcha rancho pesada, guitarra distorcida e saturada de efeitos, junto ao teclado, e toda uma variedade de vozes resmungantes (duplos de Amud). Quem fala voga “na crista da história” “como manda o figurino”, isto é, segue a corrente dominante, contudo, assim o faz empoderado, jactando-se. Já “Sal insípido” é uma primeira pessoa do plural, um “nós” enfraquecido, apático, sem gosto e, ao mesmo tempo, também dominante “desde priscas eras”, que ameaça “quem não virar um dos nossos”.
Logo, a enunciação desta canção complementa a anterior, porém, com traços opostos: uma quem fala é um Lúcifer, outra são seus seguidores letárgicos. O contraste também ocorre no plano musical: numa é uma marcha cheia de vozes caóticas da turba carnavalesca demoníaca, outra é feita de uma batida manca, aleijada, cujo motivo se desloca para partículas de duas ou três notas das cordas que se desencaixam, reiteradamente. O sentido semiótico dessa particularidade formal é engolfar o ouvinte numa engrenagem sem saída, uma sorte de colônia penal kafkiana. As cordas variam entre notas longas e fragmentos partidos, enquanto a harmonia ascendente é impelida em direção ao abismo. Este se presentifica no meio da canção, momento de pausa de toda a banda que dá lugar ao ambiente sacralizado do órgão catedralesco e do coro feminino, tributando “libações ao demo”. É neste ponto do álbum que se dá o ápice da inversão simbólica dos mistérios cristãos, “a cruz contrária” de 2 “Gnose song”.
“Sal insípido” é, a meu ver, ainda mais espantosa que “A marcha dos desacont ecimentos”, pois consegue operar a crítica da resignação e da apatia contemporânea com o ímpeto da elaboração artística: ela mimetiza a inércia, transfundindo-a, e alcança a potência. As duas canções são, de qualquer modo, uma surpreendente resposta vital à mediania moribunda. É preciso frisar que o disco é de 2010, anterior à insurreição de 2013 e a todas as decorrências bem conhecidas.
As últimas faixas de Sacradança são bem diferentes umas das outras: “Aquela ingrata” (faixa 8) é um frevo bem humorado em que o eu lírico se queixa, de forma cômica, da independência da canção em relação a ele, inaugurando na sua produção um tipo de letra autorreferente bem humorada (que vai se desdobrar em “Plano de carreira” de O cinema que sol não apaga). “Regonguz” (faixa 9) é um baião que se refere à perspectiva de reencantamento com a linguagem sagrada proporcionada pela obra de Guimarães Rosa, introduzido por um vocal tibetano cheio de atmosfera mística (cujo desdobramento ocorre especialmente no baião de “Papoula brava” em De ponta a ponta tudo é praia palma, no qual o poeta sonda “arcanos oráculos teoremas/ escrituras e profundidades” e decifra “os números ocultos constelados na miúda joaninha”) e “Madrêmana” (faixa 10) é uma súplica dramática do cantor para que a morte mantenha distância. A última canção do disco confirma a riqueza instrumental do todo: piano, violoncelo e flauta revezam momentos líricos acústicos (melancólicos ou acalentadores, de sabor infantil) com marcações acentuadas da mudança dos acordes, golpeados pela banda toda. Por essa alternância circular a letra percorre, com uma série de epítetos poéticos, para a morte.
Ao observar o conjunto das faixas, duas canções alegres, 3 “Enquanto existe Carnaval” e 8 “Aquela Ingrata”, e uma feliz (que não é “leve”, mas é esperançosa e redentora), “Regonguz”, faixa 9, contrastam com o tom sombrio, sério, solene e mesmo desconfiado da maioria do álbum. As duas canções iniciais fundadoras (da pedra da Igreja e da gnose esotérica) se refletem nas duas canções centrais infernais (6 e 7), assim como as três canções amorosas (3, 4 e 5) são correspondentes românticos decadentes das três canções finais (8, 9, e 10) que terminam com a morte, em que a faixa 8 (“Aquela Ingrata”) justamente espelha a leveza da faixa 3 (“Enquanto existe carnaval”). Quatro canções são carnavalescas (3, 4, 6 e 8) sendo que a sexta, “A marcha dos desacontecimentos”, é uma festa luciferina, logo, invertida, e “Sal Insípido” é a engrenagem, a desconstrução do coliseu festeiro na máquina moedora inescapável. Tais paralelismos descortinam o rigor dramático da obra, a dança sagrada das desventuras dantescas, que, contudo, apresentam brechas, escapes, fugas em direção ao fim do túnel, de modo que o caráter demoníaco está inteiramente a serviço de sua libertação, mesmo no âmago da condenação, vivida em meio aos cultores do mal, os que proclamam “somos a Terra Mãe na menopausa” (“Sal Insípido”). Inclusive, as sugestões anti-ecológicas dessa frase são precisas: o coro de “Sal insípido” está em plena consonância com a destruição da natureza, que, no próximo álbum, De ponta a ponta tudo é praia palma, é tão vicejante em alguns momentos e tão desoladora em outros (em “Devastação”, especialmente).
Em outras palavras, o tártaro do contemporâneo contém, secretamente, mas onipresentemente, a apocatástase da poesia, experimentada nas percussões africanas de “Pedra da Iniciação”, no baião nordestino de “Regonguz”, com seu violão e acordeom e nos violinos quase politonais do final de “Gnose song” – que remetem ao “eu sinto ar de outros planetas” (Ich fühle luft von anderem planeten) do quarto movimento do segundo quarteto de Schönberg, de 1908, chamado, não à toa, de “Êxtase” (Entrückung). Este é, por sua vez, o nome do poema de Stefan George cantado por uma soprano. Adorno se referia constantemente a esse quarteto, por marcar a descoberta de Schönberg da atonalidade: a inovação formal está ligada a uma experiência extática; no caso de Amud, a materialidade harmônica de trechos peculiares guardam vestígios do sobrenatural. Não vou comentar em detalhe os outros álbuns; minha breve análise do primeiro serve como exemplo da exuberância dos próximos.
Hermano Vianna, que fez um belo comentário deste primeiro disco de Amud, se impressionou com a “dinâmica King Crimson de Sal insípido”. De fato, o disco se assemelha muito não só à rica instrumentação das bandas de rock progressivo (que incluem sopros, teclados e cordas), à ambição de conjugar complexidade instrumental com densidade poética de intuito surreal e imaginativo como também ao teor crítico e dissonante de muitas delas (é o caso de King Crimson, Gentle Giant e Van der Graaf Generator, para ficar só com três; Frank Zappa pode ser visto como progressivo ou não, de qualquer modo, faz parte da trupe dos mais ousados). A obra de Amud contém fortes afinidades com o rock progressivo, especialmente esse CD, sem deixar de estar dentro do núcleo cancional da MPB.
A proximidade entre rock progressivo e MPB já existiu no Brasil em bandas como Mutantes, Som imaginário (que antecipou o Clube da esquina, com a presença de Wagner Tiso e Zé Hendrix), O Terço (com Flávio Venturini), A Barca do sol (tendo como integrantes Jacques Morelenbaum e Ritchie) e o próprio Clube da Esquina – Milton Nascimento criou uma amizade duradoura com integrantes do Yes e do Genesis nessa época. O exemplo mais surpreendente é a banda Vímana, que não lançou nenhum álbum mas tinha como integrantes Lulu Santos na guitarra e vocal, Lobão na bateria e Ritchie na flauta e vocal. A banda chegou a ensaiar com o tecladista recém-saído do Yes Patrick Moraz, entre 1977 e 1978. Quem se dispuser a ouvir ficará estatelado com a destreza dos instrumentistas que depois se tornaram cantores de sucesso.
O tempo de irrupção do rock psicodélico foi de 1967 a 1969 e o tropicalismo pode ser visto como sua versão nacional (especialmente no caso de Mutantes, contudo, sabe-se que o movimento é bem mais do que isso); o progressivo, que é um desdobramento da desobstrução psicodélica, vigorou de 1970 a 1977, precisamente o momento de esplendor das maiores experimentações no terreno pop. Arrigo Barnabé, uma espécie de Frank Zappa brasileiro, é a decorrência tardia desses ares, inclusive combina com o progressivo mais dissonante (que, na época dele, final dos 70 e anos 80, foi chamado de Rock in opposition, uma vertente mais vanguardista do progressivo, atuante especialmente na França).
Depois de 1977, o progressivo foi banido das rádios e gravadoras porque não mais interessavam propostas ambiciosas, “pretensiosas”, com faixas muito longas, desejos de expandir a imaginação e esgarçar a canção. Ainda assim, alguns trabalhos dos anos 80 tentaram explorar a via teatral aberta por Arrigo, como Letícia Garcia, Sergio Rojas, Arthur Kampela e Tim Rescala, o que rendeu obras que hoje podem ser vistas como preciosas e raras, mas todos rapidamente abandonaram o beco sem saída. Constata-se que toda uma geração começou buscando o Graal do Fausto estético, leverkühniano, antes de finalmente se entregar ao Fausto da maior visibilidade; a outra via é assumir um percurso puramente jazzístico ou erudito, devidamente enclausurado em uma bolha profissional. A edênica ambiguidade entre as veredas se perdeu. Por outro lado, foi precisamente em notabilidades como Gil, Chico e Caetano que os dois Faustos se mantiveram o mesmo, felizmente, e o surgimento de Guinga também abriu uma janela colorida, mas, na maioria dos casos, as narrativas são tristes, pelo menos para quem tanto ansiava pelo desenvolvimento de um mercado musical mais inclusivo, milagre que de fato aconteceu entre 1967 e 1977, mas depois recrudesceu e com o passar dos anos só piorou. Pois bem: é justamente contra esse muro maciço imperante que Amud, tempos mais tarde, se insurgiu.
Há no ar indícios auspiciosos de reaproximação entre o progressivo e a MPB. A obra de Amud é uma de suas mais bem estabelecidas comprovações – Eduardo Losso
Não deixa de ser um bom sinal que a cena progressiva mundial tenha ganhado cada vez mais força nesta década. Ninguém menos que Chico Buarque – no documentário Chico – artista brasileiro, de 2015 – conta que seu neto, e filho de Carlinhos Brown, Chico Brown, lhe apresentou uma banda de rock progressivo que o impressionou. Recentemente, Chico Brown fez parte de um vídeo em homenagem à banda Gentle Giant, ao lado de diversos músicos fãs do mundo todo executando virtualmente uma de suas grandes composições e incluindo os próprios membros da formação clássica, que não tocavam desde o fim da banda, em 1980. Outro ótimo exemplo é o belíssimo CD de Kristoff Silva de 2017, Deriva, em que a faixa “Durantes” cita explicitamente, no seu arremate, a clássica “Heart of the sunrise” do Yes.
Há no ar indícios auspiciosos de reaproximação entre o progressivo e a MPB. A obra de Amud é uma de suas mais bem estabelecidas comprovações.
Falta entender qual o sentido de termos um artista tão fenomenal vivendo aparentemente no tempo errado, ao sonhar com castelos de altos projetos artísticos, com o desejo de que se tornem biscoito fino para as massas. Se presenciamos a calamidade do negacionismo, das fake news e das manipulações ideológicas aberrantes, talvez todo o cortejo apocalíptico seja um vago sinal de que está faltando acesso da população a uma diversidade de opções estéticas; não é o caso de alimentar preconceitos com funk, sertanejo universitário ou qualquer outra vertente, mas tampouco vale a pena impossibilitar o contato da população com novos Chicos e Caetanos escondidos na penumbra.
Se presenciamos a calamidade do negacionismo, das fake news e das manipulações ideológicas aberrantes, talvez todo o cortejo apocalíptico seja um vago sinal de que está faltando acesso da população a uma diversidade de opções estéticas – Eduardo Losso
Não há maior investida contra o neoliberalismo aplicado ao mercado cultural do que retomar e reinventar os poderes estéticos dos anos 70 que foram aniquilados por ele nos anos 80 em diante. Se o elemento progressivo, traços de radicalidade tropicalista e outros projetos avessos a modas foram descartados da cultura mediana e niveladora neoliberal, Amud, nas palavras de Caetano, é o transtropicalista que acorda tais fantasmas do passado, invoca o regonguz e ressuscita o espírito transgressor de uma estranha espécie de vanguarda imbuída de tradição, de uma tradição vanguardista do Brasil profundo. Em “Ancestral”, uma das canções de De ponta a ponta tudo é praia palma, a letra repete anaforicamente o verso “sou velho”, ligada à faixa anterior, “Outro acalanto”, em memória de Dorival Caymmi. No contexto atual de descaso com os idosos pelo sistema de saúde, um jovem assumir velhice ganha o mesmo grau de transgressão que havia quando, no programa de TV “Divino Maravilhoso”, em 1968, Caetano brada a palavra de ordem “Acabar com o velho!”. Sinais aparentemente contrastantes em tempos diferentes possuem mais simpatias profundas do que repetir o mesmo gesto.
Se Amud disse que precisou ser Caetano, Duprat e Torquato na mesma pessoa, é o caso de especular qual posição ocupa em relação a outros. Ele se assemelha a Caetano pelo projeto de um movimento artístico cancional (fundando o Coletivo Chama, ativo entre 2011 e 2017)? Não tenho dúvida. Ao mesmo tempo, é bem diferente, pois se aproxima mais de um Arrigo pela opulência musical, porém difere deste último por não se movimentar numa estética urbana paulista underground, muito menos cultivar certo olhar de quadrinista, certa linguagem adolescente, algo que o bruxo paulista tem em comum com Zappa.
O âmbito de Amud é literário e sublime, fascinado pelo sagrado, e sua forma de sair do elevado é via carnaval. Ainda assim, o gosto pelo religioso em Amud não é meramente conservador, é filho tanto de Guimarães Rosa quanto do modernismo católico de Murilo Mendes e Jorge de Lima, isto é, congrega o arcaico, o teológico e o contemporâneo, ainda que o contemporâneo em que transita esteja bem distante das modas em voga. Talvez seja menos inexato dizer que ele não seria semelhante nem a Duprat nem a Zappa nem a Arrigo, antes, ele pode ser visto como uma mistura de um Villa Lobos (um compositor imerso em tradições populares) com um Caetano (um cancionista pensador). Mas é claro que a especulação tem seu lado vão e inútil: Thiago Amud é simplesmente outra coisa.
Nos dois discos posteriores, a qualidade camerística e por vezes orquestral de cada canção foi reforçada. Por conseguinte, é preciso asseverar que seu trabalho composicional extravasa o de um arranjador (com toda admiração que tenho por arranjadores): as canções apresentam uma partitura minuciosa, que não deve em nada nem em complexidade nem em estruturação a composições eruditas. O fenômeno Amud consiste nisso: cada canção de um álbum possui uma enorme singularidade instrumental (logo timbrística, o que Hermano Vianna salientou) em relação a todas as outras e cada momento da partitura simplesmente não se repete, mesmo que o par estrofe e refrão se alterne.
Só para destacar os exemplos mais discrepantes: no primeiro disco, do qual já foram mencionado vários detalhes, ainda pode-se acrescentar o solo de gaita em “Aquela ingrata” (faixa 8). Em De ponta a ponta tudo é praiapalma o ouvinte é surpreendido com a ausência da bateria, substituída por uma operação de retrocesso na história, ao desmembrá-la em diversas combinações percussivas, o que dá ao disco um delicioso toque arcaizante. A maioria das faixas do álbum seguinte seguem a mesma orientação. Não deixa de lembrar o primeiro disco da banda progressivaA barca do sol, de mesmo nome, de 1974, que optou por esse tipo de formação acústica, destacando-se o violoncelo de Jaques Morelenbaum. Também remete à predominância percussiva de um álbum como Joia, de 1975, de Caetano. Os dois violões portugueses e o adufo de 1 “Fado de bandarra” sugerem o tempo fundante do descobrimento; saliento os flautins (que parecem representar a joaninha), o clarone e a brilhante presença do panderista virtuose Sergio Krakovski, do Coletivo Chama, em 4 “Papoula brava”; o coro dramático de 8 “Estigma”; a atmosfera aquática do vibrafone de 9 “Outro acalanto”, 10 “Ancestral” e 12 “Silêncio d’água”; a percussão ameríndia de 11 “Toante”.
Em O Cinema que o sol não apaga sobressai especialmente a presença da produção e dos sintetizadores de Ivo Senra, do Coletivo Chama, indispensáveis para o clima futurista do álbum, e sua combinação frequente com a viola caipira é indisfarçavelmente tropicalista; destaca-se a imensa variedade timbrística sobreposta em série de 5 “Autoretrete”, que corresponde ao arrolamento vertiginoso dos neologismos; o prato e a faca de 6 “Desamanhecido”; o surpreendente piano preparado junto da viola caipira em 7 “O teu coração: superfície de Marte”, que infunde um ambiente alienígena e desolador (canção irmã de “Devastação”, do disco anterior); o vibrafone de 8 “Tênias e falenas” e 12 “O mundo imaginal”, que aqui contribui para a sugestão do imaginário extravagante; os assobios espaciais de 13 “Quando a esquina bifurca” e 14 “Cinema russo” e, finalmente, o imponente conjunto afro-brasileiro, com menção especial à caixa de congado, de “Nascença” (canção afim a “Regonguz” no caráter soteriológico), que consuma o poderoso ritual mineiro. Se os três discos formam uma trilogia, como propõe Paulo Almeida, então a canção inaugural do primeiro, “Pedra de iniciação” e a última do terceiro, “Nascença”, são os extremos que se tocam no efeito esplendoroso da majestade percussiva.
Amud carrega certa fixação pela vidência. Por isso o primeiro álbum é mais gnóstico e demoníaco, logo, é possível afirmar que configura uma grande premonição dos tempos extremistas – Eduardo Losso
Amud carrega certa fixação pela vidência. Por isso o primeiro álbum é mais gnóstico e demoníaco, logo, é possível afirmar que configura uma grande premonição dos tempos extremistas, de 2013 até hoje; o segundo é mais aquático e intimista, produzindo uma releitura da história do Brasil até o presente (ainda que eu deva salientar que tal releitura também ocorre, mesmo que em menor escala, no primeiro, e a sua pequena crítica tende a não prestar atenção nesse ponto); o terceiro é mais explicitamente sebastianista e atua a partir do presente em direção a um futuro talvez esperançoso, sendo o cinema (mesmo que cite clássicos como Tarkovski) um signo de (pós-)modernidade. A produção de Ivo Senra contém todo um tratamento eletroacústico de vanguarda, o que, não nas primeiras mas na maioria das faixas seguintes, intensifica o pendor intrincado do compositor.
Em suma: para além das esquisitices na escolha de um instrumento especial em determinados casos, o fato é que cada canção oferece uma combinação instrumental toda idiossincrática. A concepção esmerada e diversificada, implicando no trabalho que tal capricho de artista obcecado deve dar, é considerável.
Nesse sentido, não é exagerado dizer que ele é um compositor erudito escrevendo para canção, não com a serenidade de Tom Jobim, mas com a combatividade transtropicalista. Não à toa, o Coletivo Chama participou da XXI Bienal de Música Brasileira Contemporânea, em 2015. Entre o erudito e o cancional, o que existe? O caminho no meio da pedra: o traço progressivo. Sua obra é o mais atual desafio das fronteiras entre o erudito e o popular, fronteiras essas que já foram fartamente mediadas pelo rock progressivo, porém, do mesmo modo, tal mediação foi rapidamente descartada pelas sabotagens neoliberais do lucro a todo custo. Daí seu inegável parentesco com ele.
Os novos tempos são de muros, pedras, bombas, vírus, ou seja: a barbárie dos homens de bem. Mas Thiago Amud inventou, intrépido, o caminho no meio da pedra. A apocatástase no meio do tártaro.
Fonte:
Instituto Humanitas Unisinos – IHU