Frequência Caiçara

Vinte e três de janeiro

Foto e texto de Ailton Martins *

Passei o dia inteiro pensando em te escrever, mas havia certa relutância em mim, devido alguns pensamentos e sensações que deixei invadirem um pouco o meu corpo. Não se preocupe, não era tristeza que me abarcou, ou alguma angústia, ansiedade… nada disso, pelo contrário, era um sentimento belo, revigorante, desfibrilador… mas de tão escasso, e às vezes manipulado, desgastado e destruído pelos ludibriadores da vida, terminamos por avaliar cada passo antes de o deixar nos atravessar, contudo, hoje, eu decidi permitir que entrasse totalmente e — levemente como a brisa do mar que vem e vai o tempo inteiro —, asfixiasse algumas de minhas agruras. Tem sido um verão diferente, por muitos motivos, de um lado me preocupa o futuro diante de uma realidade de tanta dor e de uma abismal desesperança que nos abarca ao mirarmos a quantidade de gente que partiu e não mais retornará, ao tempo que todo acirramento das desigualdades sociais, de outro, essa corrente elétrica que tem feito meu peito arquejar fortemente e, digo, depois de longos períodos de sombra, tem me feito encarar o mundo das trepadeiras onde serpentes nos engolem.

 

São tantos alumbramentos que surgiram nesses últimos dois meses, Vinte de Janeiro, que estou a mirar o horizonte com olhos que pensei estarem perdidos, de algum modo me vi também, como há tempo não fazia, e recordei que tem uma guerra lá fora acontecendo, e admito: estive acovardado diante dela, muito. Vi muitos horrores de perto nos últimos anos, e eles começaram a me perturbar durante algumas noites, a tomar parte de meu corpo ao ponto de eu não saber distinguir quem era mais, se também parte do horror, ou não, só pretendia, ao menos, o estancar. Ainda não estou bem certo, camarada, mas estou preparando armaduras para voltar.

 

Essa semana, enquanto esperava o trem para levar minha pequena filha a uma consulta, observei que a quantidade de pessoas trabalhando pelos semáforos têm aumentado de forma aterradora, assim como a população em situação de rua. O futuro é perturbador. Em sua carta anterior, li que você segue com essa mesma preocupação, em relação o achincalhamento da vida e os impactos aos desfavorecidos, pois é, a vida neste momento tem se resumido a isso, preocupar-se em como manter-se em riste e sobreviver. Vivemos o passado no presente de forma muito piorada, triste pensar que cada dia trágico ainda é melhor que o próximo. São 215 mil óbitos, e não cessam, todos os dias centenas de vidas são levadas. Não sei quanto a você, mas para mim que tenho vivido sobre esse impulso da palavra como uma ferramenta de comunicação, criação, arte e reflexão. Vou lhe confessar que tenho travado comigo um duro combate para me manter escrevendo sobre alguns assuntos, por exemplo, neste momento não estou à vontade para produzir sentenças precisas sobre a situação política, sinto as palavras em desgaste, ignoradas… e isso me dói.

 

Como iremos avançar neste país com tamanha miséria? As pessoas não lêem mais nada. Hiper-focam num lead da notícia e só. A partir dali vão gerando entropia e construindo verdades imbecis. Até as redações se tornaram um curral de negócios. Mercantilizaram a informação.

 

Sinceramente tenho me mantido em silêncio, uma forma que encontrei para afastar mentecaptos.

 

Abraços.

 

* Este texto faz parte de uma série de crônicas publicada pelo autor no seu perfil no Facebook.

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