No Dia Internacional de Luta contra os Agrotóxicos, celebrado em 3 de dezembro, consideramos importante resgatar o debate sobre os riscos ao meio ambiente e à saúde humana, além de flagrantes violações à Constituição Federal presentes na lei procedente do Pacote do Veneno.
A Lei 14.785/2023, oriunda do projeto de lei conhecido como “Pacote do Veneno”, foi objeto – por anos – de forte atenção e de diversas denúncias por vários setores, tanto pelo seu percurso para aprovação pelo Congresso Nacional, quanto pelo seu conteúdo e impacto para os direitos humanos.
Objeto de forte lobby de indústrias dos agrotóxicos junto ao Executivo e Legislativo federal, o Pacote do Veneno trouxe profundas mudanças e retrocessos na legislação até então vigente para a regulamentação dos agrotóxicos no país, a Lei 7.802/1989.
De autoria do ex-senador Blairo Maggi (PP-MT), conhecido como “rei da soja”, o projeto de lei contou com intensa pressão de representantes do agronegócio, dentro e fora do parlamento, ao longo da tramitação no Congresso Nacional e forte esforço da bancada vinculada ao agronegócio, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Majoritária nas últimas legislaturas, a Frente aglutina hoje 47 dos 81 senadores e 300 dos 513 deputados e deputadas.
A forte incidência junto ao Executivo por associações, empresas e lobistas ligados a indústria química também marca o Pacote do Veneno. O lobby foi ainda mais intenso no período em que o Congresso analisava os vetos do presidente Lula à nova lei de agrotóxicos, entre abril e maio de 2024. De acordo com monitoramento realizado pelo Fique Sabendo, iniciativa de monitoramento do Executivo, apenas nestes dois meses o Executivo Federal recebeu 137 vezes lobistas ligados ao agronegócio.
Intensas também foram as manifestações contrária à proposta legislativa. Ao longo da tramitação o projeto de lei foi amplamente repudiado e denunciado por Relatorias Especiais da ONU, Conselho Nacional de Direitos Humanos e Instituto Nacional do Câncer (Inca), além de diversos órgãos públicos, autoridades nacionais e internacionais, conselhos de direitos e controle social, órgãos do Sistema de Justiça. Nestas manifestações os órgãos e organizações apontavam as violações à Constituição Federal presentes no texto da proposta legislativa. Violações ignoradas pelos parlamentares interessadamente favoráveis à medida.
Com a aprovação do Pacote do Veneno pela Câmara e Senado, a sanção do projeto com alguns vetos pelo presidente Lula em dezembro de 2023, e a derrubada desses vetos pelo Congresso Nacional em maio deste ano, o caminho foi acionar o Judiciário. Em agosto deste ano, partidos políticos e confederações de trabalhadores rurais, com apoio da Terra de Direitos e outras organizações sociais, ajuizaram uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a inconstitucionalidade do Pacote do Veneno. Além da Terra de Direitos, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, Instituto Preservar, FIAN Brasil e a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema) figuram como amicus curiae (amigos da corte) na ação, com fornecimento de informações para tomada de decisão pela Corte. Não há ainda previsão de quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7701 deve ser julgada pela Corte.
Aqui a gente reúne 6 vezes que o Pacote do Veneno viola a Constituição Federal.
1.Flexibiliza, de modo intenso, os critérios para o registro de agrotóxicos
A Lei nº 7.802/1989 proibia o registro de agrotóxicos com características que pode causar câncer, anormalidade no desenvolvimento do feto, indução de mutação genética, distúrbio hormonal e danos ao meio ambiente e saúde. Vetava também o registro de substâncias que o Brasil não dispunha de métodos para desativar seus componentes. E só permitia o registro de produtos apenas quando a ação tóxica fosse comprovadamente igual ou inferior aos produtos já registrados.
Com o Pacote do Veneno o processo de análise de novos agrotóxicos é bastante subjetivo. Diz que devem ser vetados os produtos que “apresentem risco inaceitável” sem especificar o que é risco inaceitável e para quem. Aponta que deve haver uma “consulta às partes interessadas”, mas sem ficar claro quem deve participar dessa consulta e de que forma. E determina na gestão de risco que sejam ponderados fatores econômicos, sociais e regulatórios, efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente sem dizer qual fator deve preponderar na liberação ou veto do produto. E ainda – dispensa exigência de registro para exportação.
O que viola da Constituição Federal: Além de violar o direito ao meio ambiente equilibrado, a saúde e do consumidor, entre outros, viola o princípio de precaução em retrocesso ambiental e o dever do poder público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (Art.225)
2.Fragiliza o procedimento de aprovação dos agrotóxicos
A legislação anterior previa um modelo tripartite, segundo o qual cabia ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a atribuição conjunta de avaliação, a partir de critérios técnicos e científicos, para a liberação ou veto de registros e fiscalização dos agrotóxicos. Pela nova lei, esta atribuição é tarefa exclusiva do Mapa. Aos demais órgãos cabe apenas a revisão complementar à análise do Ministério. Ou seja, a avaliação dos impactos para saúde e meio ambiente com a liberação de determinados agrotóxicos pode não ocorrer se não requerida pelo Mapa.
Com o poder de definir sobre como será a decisões sobre a aprovação de novos substâncias e como será conduzida a análise de risco, não se sabe quem participará do processo, como as decisões serão tomadas e se sociedade poderá participar, por exemplo.
O que viola da Constituição Federal: direitos à vida digna, meio ambiente equilibrado, saúde, do consumidor, entre outros.
3.Fragiliza procedimentos para reavaliação dos agrotóxicos já registrados
Na lei anterior entidades de atuação na defesa do consumidor, saúde e meio ambiente e partidos políticos poderiam pedir o cancelamento ou a impugnação do registro de agrotóxicos por prejuízos socioambientais. Assim, garantia a possibilidade de controle externo de substâncias de alta toxidade.
Com o Pacote do Veneno os procedimentos de reanálise de registro e de riscos cabem exclusivamente ao Mapa, órgão que não possui competência legal e especialização técnica para avaliar riscos nocivos e tóxicos à saúde e meio ambiente.
O que viola da Constituição Federal: como o tema da reanálise é altamente complexo, a atuação interdisciplinar de áreas e órgãos é fundamental. O sistema tripartite vigente antes do Pacote do Veneno (Mapa, Anvisa e Ibama) contribuía para compatibilizar o respeito ao direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (violados com o Pacote do Veneno) com o direito ao desenvolvimento da atividade agrícola no país.
Novamente a mudança normativa viola direitos à vida digna, meio ambiente equilibrado, saúde, do consumidor e papel do estado em adotar medidas de precaução sobre produtos de potencial impacto à saúde e meio ambiente, entre outros.
4.Fragiliza a fiscalização dos agrotóxicos
A atribuição de fiscalização dos agrotóxicos era, na lei anterior, de competência da estrutura tripartite (Mapa, Ibama e Anvisa). Na Lei Pacote do Veneno a fiscalização é tarefa exclusiva do “órgão registrante”, ou seja, o Mapa. Com isso, o Ministério deve desempenhar as ações de inspeção e fiscalização de produtos, fiscalização da pesquisa, da produção, da qualidade, da importação, da exportação de produtos, aplicar penalidades administrativas e auditar instituições.
Como órgão com maior atenção para as questões e interesses relacionadas à agricultura, o país perdeu uma fiscalização de abordagem interdisciplinar, com menor importância à fiscalização de aspectos vinculados à saúde e meio ambiente. Outro retrocesso é que, ao concentrar a ação no Mapa, a polícia do Ibama e Anvisa deixam de atuar e, com isso, há uma redução de agentes com a atribuição de fiscalização, enfraquecendo a ação de fiscalização pelo poder público.
O que viola da Constituição Federal: Como a lei flexibiliza o controle sobre produção e comércio de agrotóxicos, há a violação dos direitos humanos ao meio ambiente equilibrado, dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultura familiar camponesa, direitos do consumidor, direito à saúde e vida digna, princípios da administração pública como moralidade, transparência, legalidade e eficiência, e outros.
5.Adota legislação que não protege a saúde e o meio ambiente do cidadão e da coletividade
Ao atribuir competência de controle dos agrotóxicos a órgãos da saúde (Anvisa), meio ambiente (Ibama) e agropecuário (Mapa), a legislação anterior evidenciava preocupação do Estado em observar e estabelecer regras de modo a garantir ausência de risco à saúde e meio ambiente pelos agrotóxicos.
Com a intensa flexibilização das regras para aprovação e uso de agrotóxicos e centralização das competências no Mapa, a Lei Pacote do Veneno viola a Lei nº 8.080/90, que trata de ações no âmbito da saúde. Essa lei estabelece que é “dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos”.
Já no que diz respeito a lei sobre meio ambiente já há o reconhecimento de relação de interdependência entre o direito ao meio ambiente saudável. Com vários estudos que evidenciam impactos ao meio ambiente (perda de espécies, contaminação do solo e do lençol freático, diminuição de nascentes, mudança na precipitação da chuva, entre outros) e alerta sobre impactos ainda não aferidos, o Pacote do Veneno também viola os princípios de precaução e prevenção.
O que viola da Constituição Federal: os direitos ao meio ambiente equilibrado, saúde, do consumidor e dever do Estado em adotar medidas (como leis e políticas) de garantia destes direitos.
6.Impacta negativamente a produção e consumo de alimentos
Com a menor atenção para registro, fiscalização e uso de agrotóxicos, o Pacote do Veneno possibilita maior contaminação de pessoas e comunidades pelos agrotóxicos. A perda de biodiversidade, da cultura alimentar e a ameaça aos territórios tradicionais também se configura como impactos
Uma dimensão afetada pelo Pacote do Veneno é que territórios tradicionais que produzem de maneira sustentável e de acordo com sua cultura também são afetados pela nova legislação. Isso inclui territórios indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, de agricultores agroecológicos. É importante lembrar que estes territórios já sofrem impactos com a expansão agrícola e uso desenfreado de agrotóxicos pelo mercado que os cercam.
O que viola da Constituição Federal: direito à alimentação e nutrição adequada. É importante resgatar que a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11.346/ 2006) determina que “É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade.” Viola também dos direitos dos povos indígenas e demais povos tradicionais.
Por Terra de Direitos