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Academia de Hollywood pede desculpas à atriz indígena após quase 50 anos de seu discurso na cerimônia do Oscar, em que foi vaiada

Em 1973, na cerimônia de entrega do Oscar, a atriz e ativista indígena Sacheen Littlefeather subiu ao palco representando o ator Marlon Brando, vencedor do prêmio de melhor ator por sua atuação no papel de Dom Corleone no filme O Poderoso Chefão, de Francis Ford Copolla.

Em meio a aplausos e vaias, a primeira mulher indígena a se pronunciar em uma cerimônia do Oscar, negou-se a pegar a estatueta dourada, deixando os atores Roger Moore e Liv Ullman visivelmente desconcertados.

Em seguida, exibindo algumas folhas de papel na mão, contou que Brando havia escrito “um discurso muito longo”que os organizadores a impediram de ler – deram-lhe apenas 60 segundos para falar – e que ela resumiu assim:

“Lamentavelmente ele não pode aceitar este prêmio tão generoso. E as razões para isso são o tratamento que os indígenas americanos recebem, hoje, da indústria cinematográfica e da televisão em reprises de filmes, e também com os recentes acontecimentos em Wounded Knee” (assista ao discurso em vídeo no final deste post).

Localizada na Reserva Indígena de Pine Ridge, do povo Dakota, no estado de Dakota do Sul, nos Estados Unidos, Wounded Knee foi palco de um massacre de indígenas por agentes federais em 1890. E, em fevereiro de 1973 – pouco antes da cerimônia do Oscar – voltou a registrar conflitos. Cerca de 200 ativistas Sioux e membros do Movimento Indígena Americano assumiram o controle da pequena Wounded Knee, fazendo seus moradores de reféns para reivindicar que o governo dos EUA cumprisse os tratados do século 19 e início do século 20. Mas, em poucas horas, a polícia cercou o local, dando início a um cerco de 71 dias, marcado por intenso conflito armado 

Foi a este episódio que a atriz se referiu durante o discurso assistido por cerca de 85 milhões de pessoas pela TV. Na ocasião, Sacheen precisou da escolta de dois seguranças para descer do palco. 

Em 2020, revelou à BBC que essa proteção foi crucial para evitar que o ator John Wayne, que estava nos bastidores, a agredisse. “Ele parecia furioso com Brando e comigo” e havia ameaçado tirá-la do palco à força. Veja só! Wayne foi um dos heróis viris inventados por Hollywood, que atuava sempre no papel do cowboy que matava indígenas.

Na época, a imprensa também contribuiu com agressões à imagem de Sacheen: contou que ela, na verdade, não era nativa americana e que só havia aceitado discursar em nome de Marlon Brando para alavancar sua carreira, e porque era amante dele. A atriz desmentiu, mas de nada adiantou.

A reparação, antes tarde do que mais tarde

Agora, quase 50 anos depois, David Rubin, ex-presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, pediu desculpas formais em carta à atriz indígena pelos abusos sofridos durante o discurso e nos anos subsequentes. Ela foi divulgada ontem, 15 de agosto, e será lida na íntegra em evento marcado para setembro em homenagem a Sacheen (conto mais adiante).

Devido ao protesto que fez em nome de Brando (dela e do povo indígena também), a atriz, então com 26 anos, passou a ser hostilizada e ignorada pela indústria do entretenimento e teve sua carreira praticamente destruída.

“O abuso que você sofreu por causa dessa declaração foi injustificado. O fardo emocional que você viveu e o custo para sua própria carreira em nossa indústria são irreparáveis”, declarou Rubin.

“Por muito tempo, a coragem que você demonstrou não foi reconhecida. Por isso, oferecemos nossas mais profundas desculpas e nossa sincera admiração”. E completou: “Seu discurso continua a nos lembrar da necessidade do respeito e da importância da dignidade humana”. 

De acordo com a Academia, o discurso da atriz e ativista indígena foi a primeira declaração política da história do prêmio, que certamente inspirou os protestos que marcariam outras cerimônias, e que se intensificaram ao longo dos anos. 

Ao site Hollywood Reporter, Sacheen declarou que jamais imaginou que viveria para ouvir um pedido como o de Rubin, e brincou, declarando que manter o humor é um método de sobrevivência para os povos nativos: “Nós, indígenas, somos pessoas muito pacientes — foram apenas 50 anos (de espera)!”. 

Em setembro, o Museu de Cinema da Academia promoverá evento em sua homenagem – Uma noite com Sacheen Littlefeather (An evening with Sacheen Littlefeather) – no qual será relembrada a aparição histórica da ativista no Oscar, em 1973, e lida a carta de Rubin, na íntegra.

Os participantes do encontro também debaterão o futuro da representação indígena nas produções cinematográficas com a ativista.

Antes e depois do polêmico discurso

Sacheen Littlefeather nasceu Marie Louise Cruz, em 1946, em Salinas, Califórnia, e teve uma infância muito difícil, quando sua saúde já se manifestou muito frágil. 

Sua mãe, descendente de europeus e americanos, trabalhava incessantemente numa estamparia de couro. Seu pai era nativo americano (Apache e Yaqui), mas entregou-se à bebida e a agredia constantemente, como a seus irmãos. Ele morreu devido a um câncer terminal com apenas 44 anos.

Após sua formatura no California State College em Hayward, Littlefeather se juntou ao movimento Indians of All Tribes. Em 1969 participou da ocupação da Ilha de Alcatraz, que de base militar e prisão federal, e depois de muita mobilização, em 1986 foi declarada Marco Histórico Nacional.

No mesmo ano do polêmico discurso, tornou-se porta-voz do National American Indian Council e protestou contra cortes nos orçamentos programas indígenas promovidos pelo governo de Nixon.

Também lutou pela representação de grupos minoritários na televisão. Em entrevista publicada pouco antes de sua aparição no Oscar, Littlefeather contou que renunciou à cidadania americana, junto com outros sete nativos americanos.

Seu rápido discurso no Oscar causou estragos em sua carreira de atriz, mas não neutralizou seu ativismo, mesmo com sua saúde debilitada. 

Ela continuou trabalhando ativamente para ajudar a resolver e driblar injustiças contra os povos nativos americanos impostas por governos e pelo desenvolvimento econômico. 

Ao mesmo tempo, tornou-se educadora e se formou em saúde holística e nutrição, com ênfase em medicina nativa, e lutava contra um colapso pulmonar e um câncer no cólon. 

Nos anos 90, descobriu um câncer de mama que se agravou: em 2018, estava no estágio 4. No ano passado, chegou a declarar que o câncer havia evoluído para metástase no pulmão direito.

Foi no norte da Califórnia, onde vive, que ela tomou conhecimento da carta de Rubin.

Um documentário para quebrar o silêncio

A história desta mulher incansável e seu impactante discurso foi contada no documentário Sacheen: Breaking the Silence, dirigido por Eric Anderson, e lançado no ano passado.

Imagem do cartaz do documentário Sacheen: Breaking The Silence

Nele, Sacheen revela que Marlon Brando ficou encantado com sua atuação durante a cerimônia do Oscar, mas depois a abandonou, deixando-a enfrentar sozinha toda sorte de preconceitos e hostilidades. Ela conta que entrou na “lista negra” ou, como prefere dizes, “na lista vermelha” de Hollywood e nunca mais conseguiu trabalhar na indústria do cinema.

O documentário foi inscrito no Oscar de 2021, mas não foi selecionado pela Academia, apesar do discurso que a instituição sustenta sobre inclusão.

Quem se interessa pela história da ativista indígena, pode assistir o documentário em plataformas de streaming (iTunes, Amazon Prime, YouTube, GooglePlay, XBox e Vudu Fandango). Reproduzo o trailer abaixo, logo após o vídeo do discurso da atriz no Oscar de 1973:https://www.youtube.com/embed/2QUacU0I4yU?version=3&rel=1&showsearch=0&showinfo=1&iv_load_policy=1&fs=1&hl=pt-BR&autohide=2&wmode=transparenthttps://player.vimeo.com/video/316908967?h=5606bfb784&dnt=1&app_id=122963

Fotos: creative commons (ela, no discurso de 1973) e cartaz do documentário

Mônica Nunes

Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.

(Fonte Conexão planeta)

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