Setor de educação do acampamento e membros da Faculdade mantêm vínculo para acompanhamento educacional e organização de biblioteca
Texto: Liana Coll
Fotos: Marília Fonseca, Guilherme Frodu, Acervo Pessoal
Edição de Imagem: Renan Garcia
Setor de educação do acampamento Marielle Vive e membros da Facudade de Educação atuam para fortalecer ensino das crianças
O Marielle Vive, situado em Valinhos (SP), é o maior acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do estado de São Paulo. Lá, 450 famílias dedicam-se à agroecologia. Mas são muitos os desafios. Com a pandemia, o acesso à educação tornou-se ainda mais difícil para as cerca de 120 crianças do local. Sem energia elétrica e sem internet, o ensino remoto não foi uma alternativa viável para muitas delas. O setor de educação do do local, no entanto, atua no reforço escolar e no fortalecimento do ensino, atividades com as quais contribuem membros da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Um projeto de extensão da FE visa fortalecer a literatura como ferramenta educativa. Ele contempla também a organização da biblioteca do local.
A professora Fabiana de Cassia Rodrigues, responsável pelo projeto, conta que a aproximação com o Marielle Vive aconteceu após o Ministério Público do Estado de São Paulo desenvolver atividades no âmbito do Núcleo de Incentivo em Práticas Autocompositivas (NUIPA-MPSP), visando a intermediação de conflitos e a garantia de direitos fundamentais. Docentes da Universidade de São Paulo (USP) e da Unicamp passaram a acompanhar o núcleo na temática da educação.
“As pessoas que vivem no acampamento tinham várias demandas relacionadas a direitos sociais e o MP foi chamado a intermediar. Uma delas é o direito à educação. Antes da pandemia, as crianças não conseguiam acessar a escola porque a Prefeitura demorou a garantir o transporte. Durante a pandemia, vieram outros problemas. Por ser um local sem energia elétrica e com problemas de abastecimento de água, as crianças enfrentaram uma situação ainda mais difícil. A partir disso, começamos a pensar em projetos de extensão que poderíamos desenvolver lá”, conta.
Junto a estudantes, funcionárias e moradores do Marielle Vive, a professora iniciou um projeto de organização da biblioteca do local, que envolverá também a formação nessa área para membros da comunidade. “Fomentar atividades de escrita, leitura e outras baseadas em literatura é uma estratégia de enfrentamento das lacunas escolares provocadas pela pandemia. Estamos trabalhando na organização e na catalogação dos livros e planejando atividades lúdicas, como rodas de leitura”, diz Fabiana.
Literatura: uma aliada no fortalecimento da educação e da autoestima
A ocupação Marielle Vive já possui um acervo bibliográfico vasto e uma Escola Popular, que recebe o nome de Luis Ferreira (assassinado durante uma manifestação pelo fornecimento de água ao local). No entanto, conforme a coordenadora de serviços da Biblioteca Professor Joel Martins da FE, Simone de Oliveira, havia uma necessidade de seleção e organização do material.
“O espaço já tinha um material muito qualificado, porém havia a necessidade de um tratamento especializado. Já a partir do primeiro contato, estabelecemos um cronograma e começamos a organizar e promover a formação. É importante ter a biblioteca organizada, com material para a faixa etária que está sofrendo defasagem educacional. A literatura pode ser uma ótima ferramenta para superar as dificuldades”, afirma.
No final de 2021, houve algumas visitas ao acampamento para iniciar o trabalho. Em seguida começariam os encontros formativos, adiados devido ao avanço da variante Ômicron do coronavírus. A formação, sob responsabilidade de Simone, continuará assim que a organização do local avaliar a possibilidade de retomada.
Estudante de Pedagogia da Unicamp e também moradora do acampamento, Marília Fonseca avalia que, além de auxiliar nos estudos, a literatura pode ajudar a enfrentar situações delicadas que as crianças sofrem. “As crianças contam histórias de violência na escola, de preconceito por serem sem-terra, e de racismo. Há uma demanda concreta em função das situações que elas enfrentam”, afirma. O fortalecimento da literatura infanto-juvenil voltada para questões étnico-raciais é um dos horizontes do projeto, e está sendo organizada uma campanha de arrecadação de acervo com este viés. A ideia é que esse material possa contribuir para fortalecer a autoestima das crianças e jovens.
Acompanhamento educacional
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as crianças mais prejudicadas do ponto de vista educacional durante a pandemia são as pobres e negras. Marília ressalta que a ausência de energia elétrica e internet dificultou o acesso à educação no Marielle Vive. “Aqui as pessoas têm baixo poder aquisitivo. As crianças têm um outro jeito de se relacionar com o mundo, em relação às crianças da cidade. Não há uma relação muito próxima com a tecnologia. Em muitas escolas, até nas públicas, grande parte das propostas puderam ser mantidas de forma virtual, mas nossas crianças não tinham condições para isso. A realidade é que pagamos mais cara essa conta”, analisa.
O setor de educação do Marielle Vive organiza alfabetização, aulas de reforço escolar e atividades complementares para suprir as lacunas e incentivar a continuidade dos estudos. Por meio de disciplinas de estágios, estudantes da FE também acompanharam as crianças do acampamento. Foi estabelecida a comunicação com o setor de educação para o auxílio em alguns conteúdos. No entanto, houve uma limitação, justamente pelas condições de acesso aos recursos necessários para a interação remota.
“Foi um processo difícil, diferente daquele das pessoas com acesso a casa, luz, internet. Mas trouxe aprendizados, conhecimentos e trocas. Foi valioso mesmo com as dificuldades”, avalia Marília. No segundo semestre de 2021, ela e duas colegas de Pedagogia organizaram atividades presenciais relacionadas à cultura popular. Na ocasião, foram trabalhadas danças populares, com atividades de consciência corporal, música, desenho, percepção e geografia.
A professora Fabiana destaca que as atividades propiciaram uma experiência rica para os envolvidos. “O contato com crianças que vivenciam uma realidade de extrema vulnerabilidade social, vendo como elas estão sendo atendidas ou não pela escola, é bastante formativo”.
O acampamento Marielle Vive: pautando a justiça social
O acampamento foi constituído em 2018, um mês após o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O terreno ocupado pelas famílias pertencia a uma área rural ociosa. A ocupação é organizada pelo MST, que desde 1984 reivindica a reforma agrária no Brasil, país onde a concentração de terras é um problema grave – 1% das propriedades rurais ocupa quase metade das terras agricultáveis.
Identificando latifúndios improdutivos, que não cumprem a função social da terra, o movimento realiza ocupações e organiza assentamentos orientados para a produção agroecológica. A organização é realizada coletivamente, pautada na justiça social, com frentes de atuação focadas nas demandas locais.
Ao longo das mais de três décadas de atuação, o MST tornou-se o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Os cultivos, além de trazerem segurança alimentar para as famílias assentadas, são comercializados, fornecendo aos consumidores uma alimentação livre de agrotóxicos.
Apesar da luta pela redistribuição de terras e pelo uso sustentável dos recursos naturais, o MST ainda enfrenta a estigmatização por parte de setores da sociedade. A bibliotecária Simone acredita que um dos motivos para isso é o desconhecimento. Para ela, aproximar-se do Marielle Vive trouxe surpresas positivas. “Ao chegar ao acampamento fiquei sensibilizada com a realidade do local, e, ao mesmo tempo, tive uma agradável surpresa, pois tive a oportunidade de compreender o significado do movimento, o espírito de comunidade, a organização, a militância e tudo o que sustenta a iniciativa. Ali você tem contato com intelectuais, com pessoas que ficaram sem moradia porque perderam a renda durante a pandemia. Pessoas que estavam à margem da sociedade e que são assistidas nesse espírito de comunidade”, conta.
“Vivemos alheios a uma realidade social que merece um olhar público mais atento. Essas pessoas só não estão entregues à própria sorte devido ao acolhimento de iniciativas do movimento dos sem-terra. A atividade de extensão traz frentes de diálogo da universidade com a sociedade, o que é fundamental”, diz Simone.
A professora Fabiana diz haver, acampamento, um cruzamento de problemáticas, desde a questão da distribuição de terras até a falta de acesso a água potável, energia elétrica e direitos fundamentais, como educação e saúde. “Presenciar todas essas questões tira a gente de um automatismo. Quando ficamos apenas na sala de aula ou na biblioteca, há um risco de ver as coisas de forma simplificada. A experiência mostra a enorme complexidade que é o acesso à educação no Brasil, quando falamos de crianças em situação de vulnerabilidade social”.
No Marielle Vive, diz a estudante Marília, incentiva-se fortemente a educação. Foi por meio de um cursinho pré-vestibular no Marielle Vive que ela se preparou para o processo seletivo da Unicamp e ingressou na Universidade. “Lá dentro voltei a estudar. O movimento valoriza muito o estudo e o conhecimento, tanto prático como teórico”, conta.
A organização das atividades educativas, agregando parceiros, é uma via para ampliar cada o acesso dos acampados e assentados aos diversos graus de formação. “A gente entende o quanto é importante o povo do MST ocupar a universidade, um espaço que deve ser de todos. Lutamos para que isso seja cada vez mais intenso”.