A agenda na casa 19, do conjunto 8, na QL 10, do Setor de Habitações Individuais Sul, em Brasília, está cheia de segunda a sexta. A mansão, de arquitetura colonial, em tom amarronzado, fica às margens do lago Paranoá. Por lá, passam o presidente Michel Temer, em eventos importantes, os ministros da cúpula do governo, e políticos de quase todas as estirpes se misturam a empresários nacionais e estrangeiros, representados ou acompanhados por lobistas que surfam na onda do agronegócio.
O item principal deste maio de 2018 é a “Revisão da Legislação de Agrotóxicos”, a bola da vez da bancada ruralista (os 228 deputados e 27 senadores de todos os partidos, com exceção de PT, PCdoB, PSOL e Rede, que compõem a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Depois de tomar as rédeas da Funai, a meta é derrubar os limites impostos pela Constituição, Código Florestal e outras leis sobre a instalação e expansão do agronegócio. O tema do momento é a mudança radical na legislação dos agrotóxicos instituída em 1989, sob o argumento de que, “desatualizada e excessivamente burocrática”, precisa ser substituída por um novo marco legal. Entre outras “atualizações”, o projeto propõe que seja retirado o alerta da caveira e advertências de risco da embalagem dos agroquímicos – que passariam a ser chamados de “produtos fitossanitários”.
O projeto tem como autor o maior produtor de soja do mundo e atual ministro da Agricultura do Brasil, Blairo Maggi, a quem caberia aplicar as novas medidas. Em 2002, Maggi assumiu uma cadeira do Senado como suplente do ex-senador mato-grossense Jonas Pinheiro com a missão de mexer na lei dos agrotóxicos. Aprovado o projeto no Senado, voltou para suas fazendas, de onde sairia para disputar e vencer a eleição para governador do Mato Grosso no mesmo ano, dando início à trajetória política que o coloca como um dos personagens mais fortes do agronegócio e do governo Temer. No mês passado, Maggi foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção que teria ocorrido no período em que era governador.
O projeto de Maggi – o PL 6.299/2002 – tramita em uma Comissão Especial da Câmara, e a bancada ruralista trabalha para que seja enviado brevemente ao plenário. Na batalha pela aprovação do substitutivo, com relatoria do deputado paranaense Luiz Nishimori (PR-PR), também ruralista, o deputado Alexandre Molon (PSB-RJ), opositor do projeto, chegou a flagrar um desconhecido votando entre os deputados sob o olhar condescendente da deputada Tereza Cristina (MS), presidente da Comissão e da Frente Parlamentar Agropecuária. Só depois de repreendida por Molon, que exigiu providências em respeito ao decoro parlamentar, Tereza Cristina pediu que o homem não se manifestasse. Ainda assim, o deputado gaúcho Covatti Filho (PP), autor de um dos projetos apensados ao substitutivo, reagiu aos gritos em defesa do desconhecido: “Aqui todos são deputados”, disse.
Diante dos protestos oposicionistas, que apontavam os dedos para ele, o homem bateu em retirada, fazendo um gesto de deixa disso para a presidente. Ninguém ficou sabendo quem era. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) arriscou um palpite. “Deve ser do bunker”, disse ele, referindo-se à fama da mansão do Lago Sul, vista, até algum tempo atrás, como um local de reuniões secretas, uma confraria em que só a irmandade ruralista ou seus convidados entravam.
O lobista
O homem que tentou votar como se fosse deputado é o engenheiro agrônomo João Henrique Hummel Vieira, 56 anos, formado na UnB, lobista e estrategista das ações rurais no Legislativo. Ele é o diretor-executivo do Instituto Pensar Agropecuária, o IPA, entidade que controla, nos bastidores, a poderosa bancada ruralista. João Henrique, como é chamado, se tornou um requisitado consultor sobre a defesa dos interesses do agronegócio no Congresso ou no governo.
É ele o homem que controla a mansão do Lago Sul que até o início deste ano funcionava a 50 metros da nova sede da FPA, na casa 6, no mesmo conjunto 8 da QL 10. Incomodados com a falta de privacidade para as reuniões dos parlamentares, IPA e FPA mudaram-se para a casa 19, deixando no espaço duas entidades coirmãs, Aprosoja e a Abrapa, e o Canal Rural, veículo comprado do grupo gaúcho de comunicação RBS pela JBS, antes de Joesley e Wesley Batista serem apanhados pela Lava Jato.
A mudança veio a calhar para a deputada Tereza Cristina, que, fazendeira e presidente da FPA, não precisará dividir o mesmo espaço com um veículo da JBS, com a qual briga nos tribunais do Mato Grosso do Sul por R$ 4,5 milhões cobrados por Joesley por conta de investimentos, segundo ele não honrados, num projeto de confinamento de bois na propriedade da parlamentar e de seus familiares em Terenos.
Também ficou para trás um texto emoldurado, escrito pelo jornalista Reinaldo Azevedo, com objetivo de demonstrar que, apesar de representar o setor que mais pesa na balança comercial e detentor da maior participação no PIB (quase 23,5% no ano passado), a bancada ruralista é tratada como a Geni da política: “Ruralistas costumam ser muito mal vistos por certos setores minoritários e barulhentos. Apanham de todo mundo: das esquerdas, dos verdes, dos índios, da imprensa, de atores e atrizes ‘progressistas’, de fanáticos do aquecimento global, do Bono Vox, do Sting… Em suma: este é um dos únicos países do mundo em que os que produzem riquezas são alvos da fúria dos que produzem discursos”, escreveu Azevedo.
A moldura que ficava na parede da entrada principal do antigo “bunker” não cabe na nova estratégia de comunicação do IPA e de seu braço político, a FPA. O diretor João Henrique, que recebeu a Pública, não costuma dar entrevistas. Chegou a pedir que a conversa fosse em off, frisando que quem fala em nome da entidade é o presidente, mas acabou concordando em gravar a entrevista (veja na íntegra em “Conversa com um Lobista”). Ele define o IPA como uma “central de inteligência, geradora de conteúdo para deputados e senadores membros da FPA, destinada a “modernizar” a legislação trabalhista rural, fundiária, tributária e indigenista “para garantir a segurança jurídica necessária” para o agronegócio.
Pouco conhecido do público, o IPA norteia e define as ações da bancada ruralista na defesa do agronegócio e na sustentação política do governo Temer. Com personalidade jurídica de associação privada, está vinculada a 40 entidades nacionais que representam os gigantes do agronegócio. Além da bancada, os ruralistas conseguem formar um bloco que ultrapassa 270 votos com a ajuda das chamadas bancadas da bíblia e da bala – que, em contrapartida, obtêm votos dos ruralistas nos temas que interessam os políticos evangélicos e/ou ligados à segurança. Vieram dessas bancadas, por exemplo, os votos de que o presidente Michel Temer precisava para escapar de ser investigado pela Justiça.
Valter Campanato/Agência Brasil
Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, o presidente Michel Temer e o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Nilson Leitão
Criado em 2011, o modelo de gestão do IPA tem como vantagem a arrecadação financeira, baseada em contribuições de 40 entidades ligadas ao agropecuário, driblando o principal obstáculo das frentes parlamentares, que, por lei, não podem ter orçamento próprio. É esse o canal para receber doações das multinacionais de sementes, insumos e agroquímicos, embora oficialmente o IPA não aceite contribuições externas.
As reuniões das terças-feiras
Além dos recursos financeiros, a força de sustentação do IPA inclui a oferta de quadros técnicos e políticos para instruir deputados e senadores, logística e estrutura física. Os deputados recebem a pauta, “positiva ou negativa”, com informações e argumentos sobre o que deve ser discutido no Congresso. As decisões são tomadas geralmente às terças-feiras em reuniões com os parlamentares mais ativos, em número que varia de 40 a 50 com influência sobre os demais.
Em conflito com entidades ambientalistas, fundiárias e de direitos humanos, o IPA defende o uso de armas na defesa da propriedade privada contra invasões e deixa claro que seus adversários principais são índios, quilombolas, sem-terra e as ONGs internacionais, que, na opinião de João Henrique, trabalham para inviabilizar a expansão do agronegócio a pedido dos países europeus. No campo político, o inimigo é quem defende os direitos ambientais, o território dos povos originários e a reforma agrária – todos protegidos pela Constituição –, vistos genericamente como “de esquerda”. Contra eles, parecem estar dispostos a tudo, como mostram, por exemplo, os ataques aos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul ou à caravana do ex-presidente Lula no Rio Grande do Sul, em uma área que já havia sido alvo de conflitos pela reforma agrária.
As pretensões do IPA vão além do Congresso e do governo. Seu objetivo é, também, estimular a influência parlamentar junto ao Judiciário e às demais entidades da sociedade civil, como explica o cientista político Gustavo José Carvalho de Sousa. “A força, a capacidade técnica e o trabalho do IPA refletem o sucesso da FPA”, diz o pesquisador, que estudou em sua monografia na UnB o papel efetivo do IPA/FPA nas disputas legislativas e políticas. Um protagonismo que ainda não é de conhecimento público, de acordo com Sousa. No ano passado, o setor movimentou R$ 30 bilhões, com isenções da ordem de R$ 1 bilhão aos fabricantes
Cientes da baixa aceitação da pauta ruralista nos meios urbanos, o IPA e a FPA estão tentando mudar a imagem através de campanhas com slogans como “Agro: a indústria-riqueza do Brasil”, financiada com ajuda de um de seus parceiros, a JBS, dona da marca Maturatta-Friboi, que ficou dois anos no ar na Rede Globo, também conhecida pelo slogan “Agro é pop, agro é tech”. Ainda assim, a mudança na lei dos agrotóxicos não está sendo bem vista pela população. Uma enquete na Câmara dos Deputados mostrava, no dia 4 de junho, que 88% dos quase 18 mil votantes condenavam a mudança da lei.
Mais veneno nas lavouras
Com uma taxa de consumo beirando 7 litros per capita/ano, a maior do mundo, e uma lei que libera o uso de agrotóxicos no cultivo com limites de 200 a 400 vezes maiores do que o permitido na Europa, os agricultores querem mais veneno nas lavouras. A proposta dos ruralistas, representada no substitutivo do deputado Luiz Nishimori, tira a concessão e manutenção do registro dos produtos das alçadas da Anvisa e do Ibama, que cuidam, respectivamente, dos impactos na saúde humana e ambientais, para se transformar em prerrogativa exclusiva do Ministério da Agricultura (Mapa). No território de Maggi, como sabem os ruralistas, a tendência é priorizar mecanismos e ferramentas que alavanquem o agronegócio.
Aos órgãos de saúde e meio ambiente caberia apenas o papel de homologar laudos de avaliação de risco fornecidos pelo fabricante. Produtos com substâncias cancerígenas, teratogênicas ou que possam provocar distúrbios hormonais prejudiciais à formação de fetos poderiam ser registrados e só seriam proibidos se oferecerem “risco inaceitável”, comprovado pelos órgãos oficiais.
O substitutivo prevê ainda concessão de registro temporário por decurso de prazo (quando o órgão público demora para decidir), elimina a competência dos estados e do Distrito Federal para restringir a distribuição, comercialização ou o uso, ressalvando que estes só podem proibir se comprovarem cientificamente os riscos, uma inversão do ônus da prova, atualmente sob responsabilidade dos fornecedores. Os municípios também perderiam o poder de legislar sobre o uso de armazenamento dos venenos, o que fazem atualmente em complemento às ações das instituições federais.
Anvisa, Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, e Fiocruz são os principais adversários do projeto, bombardeado também por ONGs, pelo Instituto Nacional do Câncer, pela Fiocruz e outras 280 entidades, além do Ministério Público Federal, que o qualificou como um “passeio” inconstitucional. As entidades advertem que, se o uso exagerado de agrotóxicos já produz danos comprovados, o quadro pode ficar ainda mais agudo diante da possibilidade de aprovação do novo marco. Muitos produtos proibidos em outros países, dizem as entidades, poderão ser consumidos largamente no Brasil.
Uma das advertências mais incisivas veio de uma Nota Técnica assinada pela presidente do Ibama, Suely Araújo, e outros três dirigentes do órgão. “O registro dos agrotóxicos, com participação efetiva dos setores de saúde e meio ambiente, é o procedimento básico e inicial de controle a ser exercido pelo poder público e sua manutenção e aperfeiçoamento se justificam na medida em que seja, primordialmente, um procedimento que previa a ocorrência de efeitos danosos ao ser humano, aos animais e ao meio ambiente”, diz a nota.
Fonte: Opera Mundi