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Canções da terra, do mar e do ar que tocam a alma dos ouvintes

Pesquisa de quatro décadas do professor da USP Marcos Santos resulta em álbuns e áudio-book que investigam línguas, instrumentos e ritmos

Por Claudia Costa 

 

Capas das obras lançadas pelo professor Marcos Ferreira Santos – Fotos: Divulgação

 

Depois de mais de quatro décadas de pesquisas, o professor Marcos Ferreira Santos, da Faculdade de Educação da USP, acaba de lançar quatro discos e dois áudio-books com músicas e poemas das mais diferentes origens étnicas. Os álbuns Arkheophonias (em dois volumes), Amantras e Arkheovox e o áudio-book Koe’ti – Mitopoéticas (também em dois volumes) reúnem, além de obras compostas pelo professor, sons e textos que ele compilou em comunidades tradicionais e povos originários, principalmente entre os quéchuas, aymaras e mapuches, na região andina, mas também em outros continentes.

 

As canções apresentadas nos discos são entoadas em pelo menos 20 idiomas, como quéchua, guarani, árabe, mongol, mandarim, hindi, basco, húngaro e tâmil, entre outros. Além disso, elas cobrem um amplo espectro de ritmos, desde o huayno andino e o ghazal indiano até o nawwari libanês, o apala nigeriano e o ditiritambo grego, passando por trovas medievais latinas, mantras védicos, milongas argentinas e cirandas praieiras.

 

Quanto aos instrumentos utilizados para executar essas músicas, a variedade também é imensa. Estão presentes nos discos e nos e-books instrumentos de sopro como tarkas bolivianas e dizis chinesas, as cordas do morin khur mongol (leia mais no texto abaixo) e do cuatro venezoelano e a percussão dos atabaques yorubás, tablas indianas, udus peruanos, djembês senegaleses e darbakis marroquinos, entre vários outros.

 

Marcos Ferreira Santos tocando quenacho – Foto: Arquivo pessoal

 

Foram muitas as vivências do professor com povos originários e comunidades tradicionais, em que sempre fez a compilação de narrativas míticas, canções e instrumentos autóctones com seus mitos de origem, em diálogo com outras tradições. Ao lado de Ailton Krenak, Marcos Terena e outros líderes indígenas, circulou entre várias aldeias e povos, em especial, os kaingangs, os guaranis mbyá e os nhandevas, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, os pataxós, na Bahia, e os ashaninkas, no Acre e no Peru. Depois, ao longo da Cordilheira dos Andes, conviveu com quéchuas e aymaras (Bolívia e Peru), chiriguanos (Bolívia) e mapuches (sul do Chile e Patagônia argentina), entre outras culturas.

 

O professor toca jondo em sarau no Laboratório Experimental de Arte-Educação e Cultura da Faculdade de Educação da USP (Lab_Arte), em outubro de 2019 – Foto: Arquivo pessoal

 

O professor investiu anos de convivência também com comunidades tradicionais instaladas no Brasil, como grupos sufis em São Paulo, os nihonji e uchinanchu (São Paulo, Cotia e Ibiúna), taoístas e chineses (bairro de Água Rasa e Brás, em São Paulo), bhaktas de vaishnavas (Rio de Janeiro, Minas Gerais e interior de São Paulo), rastafari (Jundiaí), quilombolas (Guaratinguetá, Tietê, interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais) e gaúchos de Rio Grande, Pelotas e Jaguarão, na divisa com o Uruguai.

 

“A ancestralidade tem um princípio de reciprocidade que faz com que nunca se converta o outro em ‘objeto de pesquisa’, mas pessoas irmanadas por um café, uma chicha ou uma cuia de chimarrão sobre a mesa da amizade, entre seus sonhos, frustrações, dores, dominação sociopolítica, esperança e utopias”, afirma o professor. “Esse processo nunca cabe nos prazos de agências de financiamento e, por isso, a pesquisa básica em mitologia diretamente com os povos originários e comunidades tradicionais pode levar uma vida inteira.”

 

“Para tratar apenas de uma canção mais emblemática, talvez fosse necessário um livro inteiro. Ouvi-la talvez seja suficiente para que a tradição se cumpra na alma do ouvinte”

 

Para o professor, o registro em formato audiovisual decorre da necessidade de ter essa investigação preservada, assim como o diálogo criativo e poético que se estabeleceu com as comunidades e pessoas que colaboraram com ele ao longo dos anos. “No âmbito dessa área de investigação e intervenção, não adianta muito e nem é suficiente tão somente o registro escrito, acadêmico ou não. A pesquisa mítica em sua forma original está intimamente ligada ao canto, à dança e aos instrumentos musicais. Portanto, ter esse material sonoro registrado era parte fundamental do processo de investigação e criação, de releitura simbólica e diálogo intercultural”, afirma. “Para tratar apenas de uma canção mais emblemática, talvez fosse necessário um livro inteiro. Ouvi-la talvez seja suficiente para que a tradição se cumpra na alma do ouvinte”, completa.

 

“Eu apenas sigo a mesma linhagem caipira e caiçara com os pés nas raízes do chão e do mar e um canto ao vento”

 

O professor pontua suas influências, entre elas o instrumentista indiano Pandit Ravi Shankar (1921-2012), o argentino Jorge Milchberg (1928), fundador do grupo parisiense Los Inkas/Urubamba, o chileno Guamary/Arak Pacha (1980) e o brasileiro Elomar Figueira Mello (1937). Lembra também que há gravações históricas de shows ao vivo nos anos 80 e conversas musicais – característica do seu “estilo didático”, sob a influência do mestre Ariano Suassuna (1927-2014) – da década de 2010 a 2020, além de produções no estúdio no seu sítio na Serra da Cuesta, na região de Botucatu, no interior paulista, onde está radicado desde 2014. “Curiosamente, a mesma Serra da Cuesta de Rio Bonito (hoje o município de Bofete), onde Antonio Candido fez pesquisas para a sua tese de doutoramento em 1954”, aponta, acrescentando que Candido também se dedicou a recompilar canções tradicionais, como é o caso de Canção de Siruiz, trecho da obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Eu apenas sigo a mesma linhagem caipira e caiçara com os pés nas raízes do chão e do mar e um canto ao vento.”

 

         Marcos Santos tocando zampoña – Foto: Arquivo pessoal   

 

A trajetória do professor Marcos Santos como folclorista começou em 1979, muito antes da vida acadêmica, que, segundo ele, foi tardia. “O envolvimento com os protestos contra o golpe militar brasileiro e chileno e a adesão à União das Nações Indígenas (1980) e ao Círculo de Integração Social dos Países Latino-Americanos me levaram a uma atuação político-social intensa, articulando cultura, música e mitologia”, afirma, comentando que vem daí sua parceria com dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Martin Coplas na Missa da Terra Sem Males, peça apresentada em 1982 no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo, e os primeiros LPs lançados em 1985 e 1986. Naquela época, conta, adotava o pseudônimo de “Arauco, el Brujo” como forma de despistar os mecanismos de repressão em função de sua proximidade com as comunidades mapuches.

 

Entre 1994 e 1998, Santos atuou na divisão de Desenvolvimento Cultural do Instituto Butantan, em São Paulo, com o objetivo não apenas de incrementar os cursos de divulgação científica para a comunidade, mas também fazer do instituto um polo de criação artístico-cultural. “Essa temática presente em minha atuação como investigador e como folclorista, através da arte-educação, se complementou com a atuação docente nos cursos de Pedagogia e de Licenciatura na Faculdade de Educação da USP, que tiveram como pontos altos a criação do Laboratório Experimental de Arte-Educação e Cultura (Lab_Arte), em 2004) e a criação da disciplina de Cultura e Educação Afroameríndia, em 2019”, relata.

 

“Todos ainda estranham – ainda que já ocorram há mais de 20 anos na USP – minhas aulas com improvisação musical com tambores, flautas, cortejos nos corredores, dança étnica nos gramados e estacionamentos, saraus nos saguões, argila, xilogravura, mosaicos, pintura em tecido, ainda que abordando Políticas Públicas de Educação, além dos meus antigos cursos de Mitologia na graduação e na pós-graduação”, diz. É por isso, explica, que todos os seus projetos de pesquisa, orientações de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutoramento (mais de 50 teses), bem como os cursos de graduação e pós-graduação, orbitam até hoje sobre três pilares: mitologia, música e iniciação.

 

Mas como definir essa extensa e rigorosa pesquisa? O professor usa as palavras do poeta e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) João de Jesus Paes Loureiro, no prefácio do livro Koe’ti – Mitopoéticas: “Marcos Ferreira Santos apresenta uma ‘cordilheira poética translinguística’; pois o material decorrente desses anos de investigação abarca também não apenas uma pletora de instrumentos e ritmos, como também de línguas em suas manifestações de origem e recriações que, fiéis aos espírito da língua e sua estrutura mítica em sua pragmática linguageira, não há como fazer traduções. Por isso, o trânsito entre português, espanhol, inglês, francês, árabe, mongol, tamil, mandarim, bengali, basco (euskera), grego, nihongo, latim, húngaro, hindi, alemão, uchinanguchi, quéchua, mapugundun e guarani”.

 

Marcos Santos adianta que prepara outro livro, Cantiga Leiga Para Um Rio Seco e Outras Mitologias, em três volumes, em fase final de edição. Outros álbuns previstos são: Dança com Minotauro, em parceria com Fabiana Rubira, explorando o universo das narrações de histórias as paisagens sonoras de registros míticos, e Killa Taki – Lunário, com canções, instrumentos e registros míticos relacionados ao culto lunar e crepuscular entre povos orientais e afro-ameríndios.

 

Os álbuns Arkheophonias (volumes 1 e 2), Amantras e Arkheovox e o áudio-book Koe’ti – Mitopoéticas (volumes 1 e 2), do professor Marcos Ferreira Santos, estão disponíveis gratuitamente no spotify, no canal do Youtube, no onerpm e nas demais plataformas musicais (Deezer, Amazon Music, Tiktok, Pandora, Shazam e Itunes, entre outras).

 

Os instrumentos, cada um com uma característica própria sonora e de matriz mítica

Para a composição dos álbuns Arkheophonias, Amantras e Arkheovox e do áudio-book Koe’ti – Mitopoéticas foi utilizado grande número de instrumentos. “São muitos instrumentos e muito ‘diferentes’ dos usuais, e cada um tem uma característica própria sonora, organológica e de matriz mítica que se articula com sua sonoridade. Portanto, a interpretação não é apenas ‘técnica’, mas deve estar articulada com o contexto da paisagem sonora, o que propicia também diálogos com outras tradições, desde que não haja conflitos entre as paisagens”, afirma o professor Marcos Ferreira Santos. Ele afirma que, “diferente dos ‘modismos de liquidificador’ (misturar tudo e ver como é que fica), sobretudo nas atuais vogas de world music, aqui as experimentações sonoras são decorrentes de largos anos de investigação e nunca são gratuitas”.

 

O professor dá como exemplo o morin khuur, uma espécie de violoncelo de duas cordas com corpo em madeira quadrado ou trapezoidal, cujo braço termina numa cabeça de cavalo esculpida. Por isso, morin khuur, em mongol, é, literalmente, cabeça de cavalo. “Durante a tentativa de Temujin (conhecido pelo título de Genghis Khan, ‘o grande unificador’) de unificar as tribos nômades mongóis, um de seus guerreiros tinha uma saudade incontida de sua mulher. Rogou a Tengri (senhor andrógino dos céus) que o ajudasse. Durante seu sono, um cavalo apareceu para o guerreiro e o levou até sua esposa. Antes do amanhecer, o cavalo o trazia de volta ao campo de batalha, voando, e assim conseguia manter-se fiel a Temujin e também à sua esposa. Até que uma outra mulher invejosa descobriu a artimanha do guerreiro e sacrificou o cavalo para que os dois amantes não mais se encontrassem”, conta o professor. Segundo ele, foi daí que nasceu o morin khuur, com suas duas cordas inseparáveis sendo tocadas juntas e o cavalo encimando o braço do instrumento, numa sonoridade que sempre faz com que os dois amantes se encontrem novamente. “É impossível interpretar o instrumento sem ter sua narrativa de origem sempre presente na constituição melódica da canção, seu arranjo e sua função simbólica na paisagem sonora que se está constituindo”, complementa.

 

Outro exemplo que o professor dá é a txalaparta basca de percussão. “São duas grossas madeiras dispostas de maneira longitudinal sobre dois cavaletes e com proteção de tecido ou lã de ovelha. As madeiras são sempre provenientes da prensa de maçã para produzir a tradicional cerveja de maçã, a sidra. Quando já não estão em boas condições de uso, são convertidas em txalaparta, que são percutidas por dois baquetes de madeira também, geralmente, em duplas”, informa. Segundo ele, o som obtido é absolutamente original e ligado diretamente ao mito de Mari, a deusa primordial do universo basco em Euskal Herria. “Mari, ama lur, em euskara, é mãe-terra. A senhora natureza protetora das árvores, frutos, dos casarios nas montanhas, que, por vezes, se vê como bola de fogo atravessando os céus à noite, com uma foice à mão, ou como ave que cruza e descruza os caminhos, senhora da vida e da morte, animando o som das madeiras nos bosques de Biskaya, que se presentifica na txalaparta.”

 

Fonte: Jornal USP

 

 

 

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