Foto:Nos tienen miedo porque no tenemos miedo, 2011, Federico Hurdato (Reprodução)
A advogada propõe a demanda e é impedida de ler a contestação do réu. O vídeo a mostra de pé na sala de audiências, digna e altiva, exigindo o representante da OAB. É expulsa, presa e algemada no chão. A advogada é negra. Jamais seria um advogado branco engravatado, membro da aristocracia social brasileira.
O candidato a presidente, em ato de campanha, descreve uma visita a um quilombo: “Fui em um quilombola [sic] em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”. Uma arroba equivale a cerca de 15 kg e se usa para gado; “procriador”, para animais. O uso da linguagem escancara a visão de superioridade do branco e a desumanização do negro.
No julgamento por crime de racismo, o ministro Alexandre de Moraes disse que referir-se a seres humanos com a linguagem que se usa para animais é uma “grosseria”, mas “o cerne da manifestação é uma crítica a políticas de governo, a políticas com as quais não concorda o denunciado”.
A linguagem que inferioriza uma categoria de seres humanos (cerca de 60% do povo brasileiro) ao compará-la aberta e explicitamente a animais não seria racismo não obstante o conceito óbvio de racismo ser exatamente o de tratar etnias como inferiores.
Podemos, pois, falar de Alexandre de Moraes, que suponho pese cerca de 100 kg, como “aquele ministro de 6,6 arrobas que não serve para nada”, mesmo que num contexto de uma crítica à sua atuação como ministro do STF? Uma mera “grosseria”, assim como dizer que negros de 7 arrobas não servem para nada?
Adilson Moreira, professor de Direito Antidiscriminatório e doutor em Harvard, afirmou sobre a decisão do STF: “as pessoas julgam casos a partir de uma posição jurídica, mas também subjetiva. Todos aqueles juízes são brancos, heterossexuais, de classe média alta, que nunca sofreram preconceito. Quando você está numa posição de privilégio, você não tem conhecimento das consequências psicológicas e sociais que isso tem na vida das pessoas”.
O julgamento do STF em si não nos diz nada de novo. Reflete a forma como a sociedade branca e privilegiada sempre tratou a questão do racismo: pela negação, reforçando-a obliquamente e criando um círculo vicioso perverso.
Mas há algo de novo nos outros episódios. O despudoramento do racismo. Uma juíza (pouco importa se leiga, naquele momento era representante do Estado) permite e consente com a humilhação da advogada negra algemada no chão. No outro episódio, poderíamos imaginar um candidato a presidente da República, antes de 2015 – talvez 2013? – falando de negros como animais?
O racismo é estrutural na sociedade brasileira. O legado do regime escravocrata marca cada negro ou descendente de negro. 64% da população carcerária é negra. Mas esses fatos, tal como apareceram contam algo de novo. Não apenas a barbárie do racismo, mas a permissividade dessa barbárie, a sua prática despudorada, aberta, à luz do dia, nas repartições públicas ou nos palanques para o mais alto cargo da República. Outros tipos de barbárie social vão se “normatizando”. Falas políticas os nutrem, ricocheteiam no irracional e em pulsões primitivas e as realimentam.
Relho na esquerda, grita a branca fazendeira candidata a vice-presidente. Quando o líder do maior partido de esquerda sofre um atentado a bala, um candidato a presidente (que chefiou uma das polícias mais violentas do planeta) afirma que ele está “colhendo o que plantou”. O outro – o inominável -, diz que porque Lula “transformou o país em galinheiro”, “está colhendo os ovos”. Se é de esquerda não é vítima; está “colhendo”. Em comício, este candidato, agora dito também “o coiso”, simula portar arma pesada incitando o assassinato de petistas. O seu sucesso nas pesquisas demonstra que a barbárie passou a ser trunfo eleitoral.
Ao fazerem isso denunciam a sua indigência moral e a estratégia de dirigir-se diretamente às pulsões primitivas de parte da sociedade. Abrem espaço, dão vazão e impulso à barbárie, o que é parte do conceito de fascismo.
Como chegamos a este ponto? Como chegamos ao ponto de ter que, não meramente votar no candidato que nos pareça o melhor, mas a uma eleição em que, como disse o jurista Pedro Estevam Serrano, a escolha é entre civilização ou barbárie? Onde esteve aninhado o ovo da serpente?
Em 2013, manifestações autenticamente populares foram tomadas em dois ou três dias pela extrema-direita e por uma massa despolitizada, amorfa, em grande parte protofascista, de camisa amarela, esbravejando que o partido é seu país, consigna típica do fascismo. Ali apareceu o que de mais atrasado, estulto, primitivo há na sociedade brasileira, aquele extrato social caracterizado desde sempre pelo ódio de classe, pela rejeição aos de baixo, pela desumanização do excluído, pelo racismo.
Essa massa foi a base social do golpe e ela se alimenta das pulsões primitivas que antes não ousavam dizer seu nome ou não ousavam ser o móvel explícito da conduta. Nós nos aproximamos perigosamente do que os antigos autores contratualistas denominavam “estado de natureza”.
O candidato da barbárie explícita é hoje o preferido do mercado e da grande mídia. A elite selvagem e predadora que deu o golpe abandonou seus representantes, digamos, “clássicos”, e abraçou abertamente o fascista. Mesmo que percam a eleição, essas forças continuarão atuando e preparando o próximo bote. Vale, se necessário, a barbárie. Pouco importa seu candidato ter dito que há mulheres que merecem ser estupradas. Ter saudado, na votação do impeachment, em rede nacional de televisão, o odioso torturador da ditadura militar. Ter declarado que prefere um filho morto a homossexual.
Em 1916, na cadeia, uma agoniada Rosa Luxemburgo escreveu o pequeno texto que conhecemos como “Socialismo ou barbárie”. As multidões que, em agosto de 1914, tomaram as ruas de Berlim, Paris e Londres, ensandecidas de fervor patriótico por uma guerra entre potências imperialistas, pouco tempo depois viam a si mesmas e a seus filhos estraçalhados nas trincheiras.
Lembremos o que Rosa disse, porque, escrito na Europa de 1916, cabe para o Brasil de 2018: “Pisada, desonrada, patinando no sangue, coberta de imundície: eis como se apresenta a sociedade burguesa, eis o que ela é. Não é quando, bem alimentada e decente, ela se traveste de cultura e filosofia, de moral e ordem, de paz e de direito, mas quando ela se assemelha a uma besta selvagem, quando ela dança o sabá da anarquia, quando ela sopra a peste sobre a civilização e a humanidade que ela se mostra cruamente como é na realidade.”.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP