Colunistas Geraldo Varjabedian

Consumo Crítico, o direito dos consumidos

Por Geraldo Varjabedian.

Publicado na e-revista Língua de Trapo em julho de 2016.

Que poucos brasileiros se enxergam como parte de uma república, parece óbvio. A maioria sequer questiona se somos nação, repartição ou sucursal do mundo… Fala-se até em volatilidades como Estado de Direito. Mas é inegável que, com ou sem crises, temos um senso bem desenvolvido de pertencimento ao mercado. A maior parte do país sonha em ser promovida a consumidora. Cidadania vem depois.
É pela negação das obviedades que sustentamos a maioria das farsas. Entre elas, essa esquizofrenia que mescla economia de mercado e democracia representativa, poder de consumo e cidadania… São indissociáveis, claro, mas não são grandes amigos, não!

Tá legal! Há muitas vitórias constitucionais das “gentes de bem” em nome dessa visão paradisíaca de plenos direitos – no consumo. Há moral demais, toda a moral de mercado, pressionando pela psicopatia de “ter”. São muitas leis. São muitos acordos e construções retóricas. São muitos alinhavos midiáticos e publicitários que constituem este céu particular que garante – antes de tudo, a credibilidade das corporações, de seus produtos, rótulos e cadeias de vendas. Na ponta de cá, a plenitude manca dos consumidores, restrita ao consumo passivo, rotulado e pautado pelo mercado, não por qualquer outro crivo. Daí, a apropriação do termo “consumo consciente, mais como gancho de vendas que ato de cidadania.

Deve ser desagradável torrar sua grana dormindo ou em transe. Concordemos, consumir é um ato sempre consciente, ainda que justificado por estados de consciência difusos. Senão, pode parecer indução, engodo, coerção! Mas a publicidade jura que não é. E digo que consumo não pode ser maquiagem para a cidadania sonegada sob as tintas do mercado. Consciente mesmo e deveras sutil é essa armação dos que sustentam privilégios com direitos consumidos.

O papo da mídia é o papo do mercado. Tudo, da fome ao medo, da saúde ao sonho, tudo induz ao consumo. Por isso, poucos se arriscam a incluir na pauta um remoto novo paradigma. Raros os que incluem a possibilidade do não-consumo como dica. É bem ensaiado… O idioma cifrado é o discurso ideológico editado pelo mercado, sabe? Idioma peculiar para cidadãos formatados para compreendê-lo minimamente sem questionar nem pagar tradutor competente que vincule hábitos urbanos a degradação socioambiental e política ou amarre as pontas entre consumo e geração de infinitos passivos…

Caminhamos acorrentados às velhas tradições superlativas do desenvolvimentismo, aferrados quase geneticamente à lógica ufanista do crescimento paquidérmico, mas insustentável da economia. E juram que é o consumo que garante o emprego. Decerto, falam em consumo de vidas e do emprego de recursos finitos!

Ainda que não saibamos ao certo o que é cidadania, preferimos deter a conversa nisto que aprendemos a chamar de “economia” dentro da compreensão mais rasa possível, mas sempre prioritária… Respeitamos as vozes da mídia, acreditamos em boas intenções corporativas, exigimos pizzas com números satisfatórios dos governos, sonhamos com representatividade e outras carochinhas. Incorporamos personagens de novela e tiques publicitários. Cantamos música de comercial no caminho de casa. Somos suscetíveis ao tom de voz de âncoras e entrevistados. Aceitamos sem questionamento quaisquer números em bocas bem desenhadas no telejornal.

De joelhos diante do que gostaríamos de aparentar, aceitamos a vida no automático: comemoramos dívidas, aplaudimos sacrifícios, moralizamos a cobiça, recompensamos o egoísmo, referendamos os sorrisos cosméticos dos especialistas. Aprendemos como crianças o “compliquês” estatístico e perpetuamos com nossas próprias vozes de consumidos a desconexão entre o imaginário imposto e nossas reais prioridades de gente.

Como se soubéssemos de fato que há prioridades, batemos no peito: – Somos consumidores espertos, ávidos de ofertas imperdíveis! Antes mesmo de cidadãos dignos, somos consumidores mansos e fáceis de ludibriar fazendo pose de exigentes, cheios de direitos!

Beira o bizarro, diante da sonegação generalizada dos direitos civis, a seriedade com que exigimos o direito de pagar, nós mesmos, por tudo… Direitos do consumidor? Eu não seria doido de maldizê-los em público, mas quais os direitos dos consumidos? Quem regulamenta o valor do tempo, do trabalho, da ausência… Quem remunera o estresse?

Investidos da cartilha do mercado, egos fáceis, tempos desperdiçados e imagens trêmulas; famílias, vizinhos, sócios e amigos de olho; dissimulamos nossas vocações de poder comprando ou desejando ou ralhando com os céus por não comprarmos…

Não é incrível que, nessa relação delicada de inseguranças, o poder de não comprar nunca venha ao caso?
Não é incrível que tantos produtos “legais” sabidamente nocivos à saúde, à sociedade, ao planeta sejam produzidos e comercializados à luz do dia em volumes estratosféricos, sem que a maioria das pessoas saiba que não devem ou não precisam ser consumidos? Não é extraordinário que o senso crítico da maioria dos consumidos sucumba à firula desse consumo rotulado, inconseqüente e obediente?

Você tem certeza de que é um consumidor consciente? Acha bacana ser um consumidor consumido por essa máquina de moer vidas? Consegue me dizer o que vem a ser consciência sem uma postura crítica mínima?

Vamos, coragem. Diga lá: Quem determina suas necessidades? Que informação tem além da institucional, aquela fornecida por fabricantes, lojistas, agenciadores, prestadores de serviços, publicidade, midiotas? Que critério ou tempo tem para elencar prioridades ou mesmo determinar a real necessidade de uma compra? O que sabe sobre os ciclos de vida dos produtos que consome “conscientemente”? Alguém avisa na caixinha sobre os caminhos tortos percorridos pelos ingredientes? Quanto de combustível queimado e gases emitidos? Quantas árvores derrubadas? Quanta água gasta? Quantos trabalhadores escravos? Quanta ansiedade? Quantos animais mortos em testes? Quanto de impostos sonegados? E do lucro alheio que sua compra financia, qual a porcentagem diária recomendada no rótulo?

O que você sabe sobre a “pegada” da corporação que produziu o que você consome? Que histórico, que informações, que dados, que ciência você compreende para além do pacotão de verdades editadas pelo marqueting? O que há para dizer além do que você quer ouvir para comprar? Já ponderou que, se soubéssemos de fato dos porquês e “comos “de cada item que consumimos, voltaríamos a pé para a floresta?

Embaralhado por questões assim, você pode até inferir que estou sendo grosseiro porque você não é um consumidor tolo qualquer. Está bem, vista o traje de gala de consumidor consciente e me diga: – Você realmente acredita que o lucro fecunda tantos produtos éticos!?

Consumo consciente é consumo institucional! Já pensou nisso? É consumo legislado pelo mercado e pelos fabricantes e pelos distribuidores e pelos varejistas e pelos, pelos e mais pelos… Sim, tem seu lado bom, na medida de sua crença nas instituições. Mas, em bom economês, você concorda que ao comprar qualquer coisa é você quem financia uma fatia de toda a cadeia produtiva?

E a lei? É suficiente uma lei para “defender” consumidores de tudo, menos da possibilidade de não precisarem comprar? Quem nos protege da lei que promove a barbárie socioambiental? Quem nos protege de sermos consumidos pelas taras do mercado? Quem nos protege da destruição da simplicidade?

Eu sei, você sabe. No fundo, todos os que participam da negação do óbvio sabem: a imensa maioria dos itens que consumimos é de supérfluos, desnecessários, preteríveis.
Mas comprar é mais que comprar… Faz parte de nossa condição moral, estética, cultural – o desnecessário, a aparência, o fausto, o privilégio, o sentido miserável de abundância através do exagero, a fartura arrogante herdada da mais precária burguesia, o apego, são ingredientes desse tal consumo consciente de consciência confiscada…

Então, podemos trocar nossos direitos de cidadãos por compras que nos fazem parecer privilegiados, é isso? Então, se você “é alguém”, você não precisa, mas compra. E o país que não garante a quem “não é alguém” o poder de comprar o essencial, aplaude suas compras, os impostos embutidos, os agrotóxicos utilizados, os combustíveis queimados, as florestas destruídas – o espetáculo completo!

E a informação? Quais nossos direitos à informação “consciente”? Rótulo basta? Qual a informação acessível à maioria? E o senso crítico, quem promove? E o que a mídia esconde, quem desvela? Quem descortina o óbvio para consagrar o poder político do consumidor a cada produto inútil riscado da lista de compras?

Chega por hoje? Ou podemos falar das vantagens imensas de não consumir ou consumir o mínimo necessário para a saúde física e psíquica, para uma vida mais simples e menos consumida, para relações mais humanas, para uma cultura mais legítima, para uma consciência de fato? Podemos falar agora em Mudanças Climáticas, Sustentabilidade e outros tantos senões ao consumo inconseqüente, mesmo sabendo que a barbárie consumista é garantida pela Constituição enquanto a tragédia socioambiental pisoteia a cidadania?

Não. Não mudaremos o tal paradigma como consumidores passivos, reles leitores de rótulos e fazedores de contas. Este é um jogo em que vítimas financiam algozes. Por isso, o próprio mercado se encarrega de transformar cidadania em utopia distante e consumo em nirvana acessível. E por cruel que pareça, é o consumo dos mais consumidos que banca o mercado.

Até compreensível que alguns de vocês não traguem fundo esse termo “Consumo Crítico”. Tudo bem… Chamem de responsável, postural, sustentável. Mas deixemos para trás o consumo passivo, obrigatório, refém, zumbi – miseravelmente, consciente.

Não podemos continuar caminhando com as botas ortopédicas do século XIX, se queremos futuro sensato para as próximas gerações. Não será mantendo, mas mudando os modos de produção a partir do consumo que teremos um mundo com a nossa cara. Talvez, consumir não seja tudo o que desejemos. Talvez, possamos, nós mesmos, produzir um bocado. Talvez, melhor seja não sermos consumidos…

Tome posse de seu poder de financiar o mundo que quer. Empodere-se, compreenda: para além do consumo institucional, a postura crítica em relação ao mercado é uma luta individual que não será televisionada. Mas pode ser o caminho para um mundo em que o consumo seja apenas uma prática sensata de cidadãos verdadeiramente conscientes.

Imagem: “A nave dos loucos” – Hieronymus Bosch (1450 — 1516)

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