Por Glauco Braga.
Do Blog Santos em off para o Portal Baixada de Fato.
professor Fábio Alkmin (fabiogeo@usp.br), que trabalha na rede de ensino municipal de São Paulo, fez seu mestrado na Universidade de São Paulo, entre 2011 e 2014, e agora, decidiu transformar no livro “Por Uma Geografia da Autonomia”. Ele esteve no México, no Centro de Investigaciones de América Latina y Caribe/UNAM. Ali, Alkmin estudou o processo de autonomia territorial indígena do Expercito Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chiapas, local que também tive a oportunidade de conhecer, ver, ouvir e aprender com os zapatistas. O livro foi publicado pela Editora Humanitas/USP, em parceria com a Fapesp. Toda renda obtida com a venda do livro O dinheiro arrecadado com a venda dos livros será enviado para o Caracol Zapatista de Morelia, em Chiapas, em forma de solidariedade à luta Zapatista. Ele conversou com o Santos Em Off.
Fábio, o que fez despertar um interesse especial por Chiapas e a atuação do EZLN?
Minha formação é na área de Geografia Humana, tendo me especializado em temas envolvendo a América Latina, sobretudo conflitos territoriais envolvendo povos indígenas. Esse é um campo de estudo extremamente vasto, e em minha opinião, urgente. Tudo começou em 2009, quando tive contato com os Mapuche, uma etnia que vem sofrendo uma série de ataques contra seu território, no sul do continente. Essa pesquisa foi me levando a outras, com outros movimentos indígenas, até que decidi entender mais a fundo o processo de autonomia territorial dos zapatistas. Com mais de vinte anos de existência, os territórios autônomos zapatistas consolidam-se como uma das experiências políticas mais complexas do contexto latino-americano contemporâneo, sintetizando de maneira híbrida formas de organização tipicamente ocidentais com práticas, tradições e estruturas produtivas tipicamente indígenas.
A ideia de escrever um livro sobre esse tema surgiu quando?
O livro foi mais uma consequência que um objetivo em si, pois a ideia inicial era desenvolver uma pesquisa de mestrado. Após a defesa do trabalho, na Universidade de São Paulo, a banca avaliadora o indicou para a publicação impressa, visto que o tema ainda é pouco conhecido no Brasil e que os debates envolvendo a autonomia estão ganhando cada vez mais força no cenário internacional. Dessa forma a FAPESP e a USP publicaram o livro, que saiu em julho desse ano.
Quando tempo ficou em Chiapas? Descreva um pouco da vida lá?
Dediquei-me a essa pesquisa por mais de três anos, sendo que meu trabalho de campo no México durou pouco mais de seis meses. Passei quase três meses na cidade do México, onde fiz um estágio de pesquisa na UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) e o restante fiquei em Chiapas, conhecendo diretamente a região e o processo de autonomia zapatista. Chiapas é um estado com forte demografia indígena, cerca de 25 a 35% do total da população, dependendo das fontes. É um estado predominantemente rural, com uma considerável reserva hídrica e áreas de floresta ainda conservadas. Apesar dessa riqueza natural, Chiapas também é o estado mais pobre do México, com mais de três quartos da população vivendo abaixo da linha de pobreza. Também é um estado violento, extremamente militarizado.
Na sua palestra, eu tive a impressão que aquela sociedade aplica o conceito da igualdade de classes na sua plenitude. É isso?
Na verdade eu não quis afirmar isso. Entendo o conceito de classe social a partir da perspectiva do materialismo histórico, isto é, de que as classes são determinadas pelas relações sociais de produção, basicamente os proprietários dos meios de produção e os proprietários unicamente de sua força de trabalho. Ainda que seja culturalmente diversa, a população indígena em Chiapas se encontra majoritariamente na segunda categoria. Assim que não sei se faz tanto sentido ler essa realidade simplesmente a partir da ótica das classes sociais. A questão se complexifica quando trazemos outras questões, como por exemplo o racismo estrutural contra os indígenas no México, que de forma geral são considerados “inferiores” ou “submexicanos” pelos não indígenas. O que os zapatistas buscam, enquanto movimento político, é justamente atacar este racismo estrutural mexicano, devolvendo aos povos indígenas seu lugar como sujeitos sociais autônomos, com capacidade política de decisão. Isso não significa um lugar de privilégio, fique claro, mas de alteridade dentro de um projeto nacional que abarque várias etnias, culturas e modos de vida.
Como funciona o território autônomo e como ele é viável?
É algo complexo. Basicamente é um território em rede, que conecta centenas de comunidades indígenas zapatistas. Por meio de assembleias de base cada comunidade elege lideranças locais, que possuem cargos rotativos. Temas ligados à comunidade são deliberados e decididos por meio dessas assembleias. As comunidades, por sua vez, articulam-se entre si e conformam um segundo nível de governo, maior, de âmbito municipal. Assim, cada município zapatista (no momento existem 27) é formado por várias comunidades. Por fim, certo número de municípios zapatistas se articulam em um nível ainda maior, as “zonas autônomas”, o terceiro e último nível de governo. A zona autônoma possui um governo rotativo chamado “Junta de Bom Governo”, formado por lideranças dos municípios, que possuem a responsabilidade de articular os territórios, proteger comunidades mais debilitadas, gerir projetos produtivos, etc. Se os membros da “Junta de Bom Governo” não cumprirem o que foi deliberado pelas bases, perdem seus cargos. Inclusive possuem um princípio muito interessante sobre isso, chamado “mandar-obedecendo”, isto é, estas lideranças deverão necessariamente obedecer as decisões tiradas nas assembleias. Vale comentar que todos estes cargos políticos não são remunerados em dinheiro, mas sim com trabalho de outros membros da comunidade. Isso é muito interessante, pois tudo é pago com trabalho. Um indígena que se torna professor da comunidade, por exemplo, terá sua roça cultivada por um outro indígena que tem o filho na escola, e assim por diante, de maneira que todos trabalham para todos. A partir dessa articulação os zapatistas criaram sistemas produtivos e de circulação, o que somado ao apoio da sociedade civil mexicana e internacional, viabilizou a criação de instituições autônomas zapatistas de educação, saúde, comunicação, etc.
Esses territórios não devem ser muito apreciados pelo governo mexicano e Forças Armadas do país. Como é essa relação com o EZLN ? Como essas forças convivem?
O governo mexicano oficialmente declarou guerra ao EZLN em 1994, quando insurgiram em armas. Apesar dessa guerra ter diminuído a intensidade, ela ainda não acabou, pois o Estado não cumpriu com sua parte nos Acordos de San Andrés (um acordo entre o governo e o EZLN, que buscava dar fim ao conflito) e portanto não houve um armistício concreto. Em outras palavras, Chiapas continua sendo um estado extremamente militarizado e violento. Soma-se a isso outra estratégia de ataque, indireta, que é o apoio implícito dos militares (e do governo de maneira geral) a algumas organizações chiapanecas armadas, inimigas dos zapatistas. Isso por exemplo ocorreu em Acteal, em 1997, onde 45 indígenas Tzotziles foram brutalmente assassinados. Aí entra uma questão interessante, pois se trata do governo alimentando disputas locais, dividindo a população, colocando indígenas contra indígenas de acordo com seus interesses, qualificando tais episódios de violência comodamente como “conflitos étnicos”. Isso ainda vem ocorrendo em Chiapas.
A grande mídia parece que nunca deu muito atenção a esses territórios e a vida que levam lá dentro. Qual sua opinião sobre isso?
É difícil generalizar, mas arrisco a dizer que a grande mídia, como sabemos formada por grandes empresas, interessam-se basicamente pelo lucro e não pela informação em si. Se a notícia tiver potencial de se tornar um espetáculo que dá dinheiro ou poder político, esta empresa investirá nisso, até a exaustão; depois simplesmente mudará o foco e criará um novo espetáculo. Acontece que informação envolvendo povos indígenas que pegaram em armas para defender seu território (e que nele ainda resistem lutando por mais de vinte anos) não são interessantes para os negócios, portanto não possuem espaço de veiculação.
Como se dão as relações comerciais dentro dos territórios e de dentro pra fora deles?
As relações comerciais existem dentro dos territórios, mas não podemos nos esquecer de que eles cultivam a terra e produzem uma boa parte do que consomem em sua subsistência, o que faz com que a circulação de dinheiro seja brutalmente menor do que em nossa sociedade urbanizada. O que eles não produzem eles compram em pequenos comércios próximos ou, o que é algo muito interessante, em bodegas administradas pelos próprios zapatistas, que por comprarem no atacado e venderem a preço de custo, são muito mais econômicos. O dinheiro com que compram estas coisas é gerado a partir da venda de produtos cultivados pelas famílias ou no âmbito das cooperativas de produção zapatistas. Alguns produtos, como o café, possuem uma rede solidária de circulação, sendo vendidos em grandes cidades do México ou até em outros países, o que gera uma renda mais justa, por assim dizer.
Todas as pessoas têm um mesmo nível social, ou seja, são iguais dentro dessas sociedades?
Não diria que são “iguais”, pois a diversidade entre os indígenas de Chiapas é muito grande, não só economicamente falando, mas também no aspecto cultural. Devemos lembrar que eles não estão isolados, estão conectados com o resto do mundo, e por isso não há uma unidade estritamente falando. Por exemplo: há comunidades em que metade dos indígenas é zapatista e a outra metade se alinha com o governo. Há comunidades em que convivem católicos alinhados à teoria da libertação com evangélicos fervorosos. Há comunidades em que indígenas migram para os Estados Unidos buscando uma vida melhor. Tudo isso é real e faz parte da diversidade de um conjunto de comunidades indígenas. Embora seja verdade que haja uma forte coesão política entre os zapatistas, nem sempre isso ocorre no âmbito comunitário, pois ninguém é forçado a ser tornar zapatista. Estas polaridades entre zapastistas e não zapatistas podem se manifestar pela simples indiferença, ou desbordar em conflitos intracomunitários. Mas os zapatistas já aprenderam que eles próprios devem tentar resolver os problemas de sua comunidade, assim, tais divergências geralmente tentam ser solucionadas por acordos políticos. Em um plano mais regional, os zapatistas criaram mecanismos de regulação para seus territórios, favorecendo uma circulação mais justa de recursos e a articulação das comunidades, onde as mais “sólidas” buscam o fortalecimento das mais debilitadas ou desfavorecidas.
Você acha que esse é o verdadeiro Comunismo e o que deu certo?
Não arriscaria dizer isso, pois a ideia de “verdadeiro” não me cai bem, além de que o comunismo é um conceito extremamente complexo. Na minha opinião a autonomia zapatista é um processo de resistência, isto é, um horizonte a que se quer chegar e que por isso te faz caminhar. Ela não é perfeita e nunca chegará ao fim, ela sempre é um processo, sempre é movimento, sempre é plural. Apesar de seus limites estruturais, esse processo trouxe de volta a possibilidade dos indígenas escolherem seu próprio caminho, isto é, de mostrarem ao governo que não são “submexicanos”, que não são inferiores, que não são agentes passivos, mas que sim são sujeitos de direito que querem e podem decidir sobre seu futuro. Essa consciência resgatou a dignidade em se assumir indígena no México, um país que como o Brasil é extremamente racista. Diversos grupos indígenas reafirmaram sua identidade nos últimos vinte anos, cultivando seus idiomas e modos de vida, não obstante a pesada carga de preconceito que isso pode significar. Além dessa conscientização, diria por último que o movimento zapatista conseguiu frear os processos de despossessão territorial que os indígenas vinham sofrendo em Chiapas, a partir da guinada neoliberal do México, no final dos anos 1980. Isso é importante pois a questão do “território” é fundamental para entendermos os conflitos envolvendo os povos indígenas hoje em dia. Os ataques aos territórios indígenas estão aumentando, e escrevam isso, aumentarão ainda mais nos próximos anos. Só uma forte mobilização política poderá frear este processo.
Acha que seria viável a criação desses territórios para os povos indígenas no Brasil?
Os próprios zapatistas afirmam que a experiência que desenvolvem em Chiapas é única e não pode ser utilizada como modelo para outros grupos indígenas. Na minha opinião isso é totalmente coerente com o princípio da autonomia, que busca justamente construir projetos de “baixo para cima”, e não ao contrário, isto é, impor modelos de “cima para baixo”. Isso não significa, no entanto, que esta experiência não possa servir como um espelho, em que cada grupo possa enxergar o reflexo de suas próprias experiências históricas, com todos os erros e acertos aí presentes. Nesse sentido, na minha opinião, é justamente isso o que os zapatistas nos ensinam, o de que a construção de processos horizontais e anticapitalistas devem se dar agora, no cotidiano, a partir das próprias particularidades históricas, forças e debilidades de cada grupo social.