São Paulo – Maior incêndio no porto de Santos (SP) – e do gênero no país – o do terminal da Ultracargo começou no dia 4 de abril de 2015, com explosão em um dos 179 tanques de armazenamento. Na sequência, outros cinco explodiram e queimaram durante 8 dias, até que todo o álcool, diesel e gasolina fossem consumidos pelas chamas. Nuvens densas, tóxicas, se espalharam sobre os municípios da Baixada Santista. Oficialmente não há registro de vítimas, mas houve prejuízo ambiental e financeiro para pescadores artesanais. Pelo menos nove toneladas de peixes apareceram mortos na região. E o manguezal, onde a vida marinha se reproduz, foi contaminado.
Quatro anos depois, em junho passado, a empresa assinou acordo com o Ministério Público Federal e estadual paulista no valor de R$ 67,3 milhões para compensar, em parte, os danos causados. Contempla assistência a pelo menos quinze comunidades pesqueiras diretamente afetadas. O episódio é um entre tantos que marcaram a história da região, alguns deles com muitas vítimas fatais, instalações destruídas e casas destelhadas.
Em abril, o fantasma de explosões seguidas de incêndios e explosões secundárias voltou a assombrar comunidades vizinhas aos terminais do porto e ambientalistas. Foi quando o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) reconheceu a viabilidade ambiental do projeto de um terminal de gás que será construído nas imediações da Ultracargo. E não muito distante da Ilha Barnabé, que desde a década de 1930 ganhou da população o apelido de “barril de pólvora“.
Em setembro de 1998, um incêndio derivado de explosão em um caminhão com produtos químicos atingiu dois grandes tanques. Do outro lado da ilha, a população entrou em pânico. No centro de Santos, muitos fecharam seus escritórios e foram para perto da orla, com medo de uma catástrofe de grandes dimensões viesse da Ilha Barnabé.
De propriedade da Comgás, o terminal consiste em uma plataforma na qual ficarão atracados simultaneamente um navio do tipo LNG Tanker, com tanques capazes de transportar 85 mil toneladas de gás liquefeito e um navio vaporizador, que converterá todo esse conteúdo novamente em gás. Uma tubulação de 20 polegadas de diâmetro e extensão de 8,5 quilômetro levará esse gás a um conjunto de instalações que fará a sua distribuição, conhecido como city gate. Todo esse aparato permitirá o transporte diário de 14 milhões de metros cúbicos de gás.
Acidentes
Controlada pela Cosan Limited, a mesma dos postos Shell, a Comgás já tem licença-prévia concedida pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Ou seja, o órgão ligado ao governo de São Paulo aprovou a localização e concepção do empreendimento, atestando a sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implantação.
Segundo informou à RBA, a Comgás avalia junto às autoridades competentes o potencial investimento para o chamado reforço estrutural de suprimento de gás na Baixada Santista. “O objetivo é ampliar as possíveis fontes de abastecimento desse insumo estratégico para o Estado de São Paulo”. Declarou ainda que a proposta foi debatida em audiências públicas nos dias 10 e 15 de outubro de 2018, em Santos e em Cubatão, respectivamente.
“A Comgás está seguindo todos os procedimentos para garantir que as recomendações do EIA (estudo de impacto ambiental) e da licença sejam plenamente atendidas, incluindo a utilização das mais modernas tecnologias e um plano de comunicação com a comunidade local. No caso da implantação do terminal de GNL, o plano de comunicação com a comunidade local já está em andamento e será solicitada a Licença de Instalação (LI) em breve.”
Na avaliação do Núcleo de Saúde Socioambiental da Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), de Santos, o projeto não segue tão conforme o figurino como o empreendedor quer fazer parecer. E por reprovar diversos pontos do projeto, ingressou com representação junto ao Ministério Público Federal e estadual. Com a medida, a entidade pretende impedir mais degradação ambiental e proteger a população de “impactos patrimoniais, físicos e emocionais irreversíveis devido ao risco constante, ou em caso de acidentes ampliados catastróficos”.
“Os navios que trarão o gás importado, principalmente dos Estados Unidos, têm capacidade para 85 mil toneladas. Um conteúdo energético equivalente 55 bombas de Hiroshima. Um alto risco. Em caso de disputa militar, será alvo de ataques. Todo o bairro Alemoa, em Santos, estará em risco de incêndios e explosões secundárias que podem chegar à Vila dos Pescadores, em Cubatão. Já tivemos muitos incêndios e explosões aqui, como a de um tanque de gás de carvão, em 1967, que deixou diversas casas destelhadas”, afirma o coordenador da entidade, Jeffer Castelo Branco.
Há ainda, segundo ele, o risco de um desses navios ser atingido por outras embarcações e explodir. E em caso de vazamento motivado por abalroamentos, falhas instrumentais ou operacionais nas operações de acoplamento, vaporização ou bombeamento, uma grande nuvem de vapor de gás natural liquefeito pode ser liberada e ser inflamada com a menor faísca ou fonte de ignição, como acender a luz ou cigarros, por exemplo, causando uma enorme bola de fogo, letal à vida em um raio de vários quilômetros.
Os riscos incluem morte por congelamento criogênico, incêndio ou explosão, asfixia, queimaduras por radiação térmica (ondas de calor), e danos ou destruição de propriedade pelo fogo ou explosão e incêndios florestais.
“Com esse projeto, é ir na contramão das alternativas de energia limpa e caminhar para a beira do abismo, quando é possível pensar em saídas e proteger uma população já tão castigada ambientalmente, em meio a um desenvolvimento caótico”.
Cargas perigosas
Na representação, a coordenação da APCO critica o local escolhido para o atracadouro, bem como as demais opções apresentadas, as quais considera insustentáveis. Isso porque o Largo Caneú, onde os navios serão atracados, fica em um ponto estreito do canal de navegação. E tem ao lado, no largo do Casqueiro, a cava subaquática. Ainda sem solução ambiental, foi aberta pela VLI, controlada pela Vale, para depositar lixo tóxico dragado de outro ponto do canal.
Ou seja, o atracadouro de navios com cargas extremamente perigosas, sujeitos a abalroamentos e outros tipos de acidentes historicamente frequentes no Porto de Santos e adjacências, “poderá trazer consequências gravíssimas para toda a região”.
Outra preocupação da ACPO é o traçado da tubulação, que passará por baixo do canal de Piaçaguera e sobre o leito do rio Cubatão, ambos submetidos constantemente a dragagens, aumentando os riscos. Além de não apresentar alternativas, o projeto do gasoduto margeia comunidades, como o Jardim Costa e Silva, em Cubatão, e imediações.
“Não pode ser aceitável expor populações urbanas a esse risco. Mesmo que estejam presentes todos os dispositivos de segurança, sabe-se que tais dispositivos têm por objetivo reduzir a possibilidade de danos ambientais e danos de monta aos equipamentos dos empreendedores. As falhas e desabilitação de tais aparatos de segurança têm demonstrado que não se pode expor populações, já estabelecidas, no raio de influência de possíveis acidentes. É preciso afastar estes processos das populações, ressalta-se, já estabelecidas nos territórios”, argumentam os autores da representação.
Por isso, eles pedem a procuradores e produtores mudanças no projeto. A principal delas é afastar o atracadouro de descarga e vaporização para longe de zonas urbanas, a uma distância mínima de oito quilômetros 8 quilômetros de assentamentos humanos. Querem ainda modificação no traçado da tubulação e do sistema de vaporização, substituindo sistemas abertos de troca de calor com uso de água marinha por outras tecnologia mais seguras.
E a apresentação, pelos empreendedores, do inteiro teor do sistema de controle de operações e segurança, dos planos de evacuação e contingência e da avaliação de riscos das operações e explicar, em diversos meios de comunicação, o risco do empreendimento à população.
Gasoduto Brasil-Bolívia
Trazer gás pelo mar não é novidade, tanto que por ali a Petrobras traz o combustível que extrai do fundo do mar para ser usado em refinarias em São Sebastião e na Baixada Santista. A diferença é que a Comgás pretende importar grandes quantidades do produto e distribuir em termelétricas e indústrias em diversas regiões do estado de São Paulo.
“A gente não sabe tudo o que pode acontecer, mas sabe que o governo Bolsonaro quer desativar o gasoduto Brasil-Bolívia, creio que por razões políticas, porque a Bolívia continua produzindo o gás natural de boa qualidade. Mas esse gás que será importado de outros países, principalmente dos Estados Unidos, é de péssima qualidade, com muito enxofre e outras substâncias poluentes, que exigem equipamentos de controle eficientes nas termelétricas e indústrias que o utilizarem”, afirma o ambientalista Condesmar Fernandes de Oliveira, integrante da Rede Caiçara Eco Socialista.
Também chama a sua atenção a quantidade prevista de navios que atracarão no terminal: de 300 a 700 por ano, que pode chegar a dois por dia. Um incremento no movimento já intenso de cargueiros, navios de cruzeiro, barcos de pesca e de lazer, todos navegando na mesma região. “Será que a nossa região comporta esse trânsito todo? O óleo derrubado das embarcações, o lixo, que afeta a vida dos peixes. Não creio que haja capacidade de suporte ambiental. Essa quantidade de navios vai impactar as espécies e o meio ambiente. Essas questões não estão contempladas no estudo de impacto ambiental. Tampouco me responderam sobre isso na audiência pública que fui. Se calaram.”
Integrante do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) de 1990 a 1998, Condesmar participou de uma inspeção de segurança nos terminais do porto de Santos. Na Ultracargo, por exemplo, foi identificada uma válvula quebrada havia anos, que nunca foi trocada. Essa mesma válvula, segundo ele, quebrou na mão de um bombeiro durante o trabalho de combate ao fogo no grande incêndio de 2015.
“Nunca houve um incêndio em terminal que ficasse queimando durante tanto tempo. Não havia preparo para debelar o fogo, não havia roupa adequada, teve bombeiro que entrou em temperatura muito além para fechar uma válvula e assim impedir a explosão de um terminal inteiro. Tiveram ir de caminhão até Paulínia, na região de Campinas, para pegar espuma apropriada. Enquanto isso os tanques iam sendo resfriado para impedir uma explosão em cadeia. Na Ilha Barnabé, onde diziam que nunca ia acontecer, não tinham material para debelar o fogo. É preciso ter todos os equipamentos, revisão, fiscalização periódica”, lembra.
Tumores
Antes do incêndio da Ultracargo, em 2015, era possível pescar 500 quilos no mês. De lá para cá, se pescar 50 quilos os pescadores já estarão satisfeitos. Dos peixes que sobreviveram, a maioria adoeceu.
Pesquisadores já encontram cação cheio de tumores. Um dos peixes mais resistentes, que sobreviveram a tsunamis e vulcões, não está conseguindo sobreviver a explosões e incêndios nas proximidades.
Segundo o ativista, 95% dos manguezais do estuário de Santos foram desmatados. “Para construir um terminal como esse, de gás, vão tirar o que sobrou. No nosso entendimento, vários desses empreendimentos não poderiam estar aqui. Não tem mais capacidade de suporte ambiental. E os que estão, têm de ter equipamento de controle de poluição e trabalhar em outras condições, diferentes das de hoje, que adotam na falta de fiscalização. É como se os órgãos fiscalizadores não existissem”.
Ele conta que na audiência que foi, a Cetesb estava defendendo o empreendedor, o que não é seu papel”. Como se tudo isso fosse pouco, o transporte internacional de gás é feito por navios velhos, geralmente chineses, de péssima qualidade, com bandeira registrada na Monróvia, capital da Libéria.
Condesmar conta ainda que a mão de obra em geral é de indonésios, sem qualificação. “O navio chinês, com tripulação terceirizada, despreparada e sobrecarregada vai aos Estados Unidos, carrega o gás barato, de baixa qualidade. Houve acidente com esse tipo de navio em várias partes do mundo devido a esse quadro. No Brasil a fiscalização é cada vez menor. Antes tinha fiscal do Ministério Público do Trabalho, do Ibama, que subia a bordo. Mas isso tudo foi desmontado. Tenho amigos, fiscais, que foram transferidos para o setores burocrático”, conta.
Ponte Santos-Guarujá
“O terminal de gás fica a cerca de três quilômetros da Vila dos Pescadores. Estará mais perto ainda da Vila dos Criadores, em Santos, uma comunidade bem menor. Trará impactos socioambientais. A pesca artesanal, esportiva e o ecoturismo serão prejudicados. A empresa reconhece que haverá impacto na vida do camarão branco, portanto em toda cadeia alimentar, até porque será usada água do estuário para “aquecer” o gás na vaporização. E esta água voltará bem mais fria para o estuário”, observa Leandro Silva de Araújo, integrante da Sociedade de Melhoramentos do Jardim Casqueiro e do Movimento Contra a Cava Subaquática.
O ativista também chama atenção para o fato de o projeto desconsiderar outras questões ambientais, como a atual preocupação com as mudanças climáticas, que têm no uso de combustíveis fósseis, como é o caso do gás, uma das causas do aquecimento do planeta. E de ignorar que os navios terão de atravessar todo porto de Santos e zonas densamente povoadas até chegar ao Terminal. “Sem contar que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) não considera o projeto da Ponte Santos-Guarujá. Teoricamente uma coisa não impede a outra, mas é mais um item que precisa ser estudado pela Comgás”, acrescenta.