Enquanto o desmatamento avança na Amazônia, quase 50 milhões de hectares de florestas públicas permanecem numa espécie de limbo, enquanto esperam o governo – federal ou estadual – decidir o que são e a quem pertencem. Essa indefinição de uso e governança deixa essas áreas de floresta não destinadas mais vulneráveis à invasão e, de acordo com um estudo publicado recentemente, grileiros já tomaram 11.6 milhões dessas florestas, o equivalente a 23% do total. Os números foram levantados por uma equipe de pesquisadores do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
O artigo foi publicado no periódico Elsevier sob o título “Terra sem lei na terra de ninguém: as florestas públicas não destinadas na Amazônia brasileira” e destaca o avanço da grilagem e do desmatamento nesses territórios. “A falta de segurança da posse da terra é uma fonte de desmatamento, exploração predatória de recursos naturais, atividades econômicas insustentáveis e violência no campo”, descreve o artigo. De acordo com o levantamento, até 2018 já haviam sido desmatados 2.6 milhões de hectares em áreas não destinadas.
“Esse é um processo histórico, de grilagem de terra, mas que agora está se intensificando justamente dentro das florestas não destinadas. Existe um processo de privatização dessas áreas que passa a ser facilitado, inclusive, com essas flexibilizações que a gente vem acompanhando na legislação, como a Medida Provisória 910, a MP da Grilagem, que agora se transformou no Projeto de Lei 2.633. Essas flexibilizações vão dando margem para que essas pessoas mal-intencionadas comecem de fato a lucrar com esse ato. Porque elas acabam conseguindo o título da terra, ou mesmo quando não conseguem o título da terra, elas conseguem vender essa terra a terceiros por um preço que é muito maior do que elas tiveram que colocar para conseguir aquela terra”, explica a professora-titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA, Claudia Azevedo-Ramos, uma das autoras do estudo, em entrevista a ((o))eco.
Ela conta que o estudo foi feito através de bases de dados públicos como o Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP) e o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SISCAR), feitos pelo Serviço Florestal Brasileiro, e informações do Incra, do Inpe e do Ministério do Meio Ambiente. “Todos os dados que a gente utilizou nesse estudo são dados públicos e isso também é muito importante porque indica que os governos têm noção do que está acontecendo, porque a maioria da informação veio justamente dos dados que estão dentro dessas instituições”, esclarece Claudia.
“Nós tiramos as sobreposições e sobraram 49.8 milhões de hectares de florestas que ainda não foram destinadas, é mais ou menos o tamanho da Espanha. O que são essas florestas não destinadas? São florestas que são públicas, pertencem ao governo federal ou estadual, mas ainda não foram alocadas para nenhuma categoria de uso. Elas não são unidade de conservação, não são Terra Indígena, território quilombola, não são assentamento, não são nada. E elas não têm um gestor específico ali cuidando. E quando nós demos um zoom para ver o que estava acontecendo dentro dessa área, nós vimos que uma área equivalente a dois estados do Rio de Janeiro, 11.6 milhões de hectares, estavam sendo griladas. E isso já acendeu todas as luzes vermelhas porque imagina você ter um patrimônio desse tamanho em plena Floresta Amazônica, que está sendo perdido porque esses grileiros estão entrando nessas áreas públicas e registrando pedaços dessa floresta pública no CAR [Cadastro Ambiental Rural]. Como o Cadastro é auto declaratório, você registra o que você quiser e só depois você precisa validar essa informação, e o CAR ainda não chegou nesse estágio de verificação. Nesse meio-tempo, essas pessoas mal-intencionadas entram e começam a derrubar a floresta para tomar posse. Nós avaliamos o desmatamento dentro dessas áreas e até 2018 foram 2.6 milhões de hectares desmatados, um território mais ou menos do tamanho do Sergipe. Ou seja, dentro daquela Espanha de florestas não destinadas, tinha um Sergipe desmatado”, diz a pesquisadora.
O artigo destaca que vários especialistas já alertaram que esse é um cenário que pode piorar nos próximos anos em função das recentes mudanças políticas no Brasil como o atual enfraquecimento governamental das agências ambientais e dos direitos à terra indígena; congelamento da designação de novas áreas públicas; legalização de armas nas áreas rurais; expansão do agronegócio, que resultam na intensificação de conflitos de terra, violência rural e exploração ilegal de recursos naturais.
O texto cita ainda que 30% do desmatamento e das queimadas na Amazônia em 2019 ocorreram dentro de florestas públicas não destinadas, de acordo com dados divulgados pelo IPAM.
A professora da UFPA ressalta ainda que o primeiro passo para lidar com os crimes ambientais cometidos nessas florestas não destinadas é, justamente, destiná-las e fazer o ordenamento deste território. “Ao destinar essas terras a gente está entregando elas à gestão de alguma instituição que vai fazer o monitoramento e o manejo daquela área. Hoje, se existe invasão em floresta pública não destinada, quem que a gente chama? Fica muito fácil de um empurrar pro outro e ninguém fazer nada. A destinação é a primeira coisa, inclusive para propriedades privadas, o que também é previsto”, completa.
Além disso, ela aponta que é preciso ter vontade política e uma ação efetiva do governo no combate aos crimes ambientais, tanto em campo, com fiscalização e aplicação da lei, quanto no discurso dos governantes.
“Quando você está na ponta, lá no campo, você está atento ao discurso das lideranças, do governo, e você se move de acordo. Se lá na ponta chega um discurso que diz que agora vale tudo, é só o sinal que basta para você começar a distribuir motosserra. Porque se o próprio governo, que deveria estar fiscalizando essas áreas que são públicas, está passando a mensagem de que nada vai acontecer, o seu trator não vai ser queimado ou confiscado, a Polícia Federal não vai chegar até você, você pode entrar na Terra dos Indígenas que está tudo bem, pode fazer mineração à vontade… É terra sem lei, mesmo”, conclui.
Fonte: O Eco