De Ailton Martins
Há cerca de dois meses recebi uma mensagem no Messenger de uma pessoa, em que ela dizia ter me marcado numa postagem no Facebook sobre uma ocupação no Jardim Rio Branco, em São Vicente, segundo ela na ocupação residiam muitas famílias em situação de vulnerabilidade social, e alguns projetos de grupos não governamentais eram realizados dando suporte com cestas básicas, contudo, não eram suficientes diante da realidade de precariedade que a maioria das famílias estava submetida. Acrescentou que estava pensando em realizar uma visita juntamente com um grupo para pensar em alguma articulação de apoio, e me perguntou se eu gostaria de contribuir de algum modo. Lhe respondi que precisávamos identificar a ocupação, a situação das famílias e ir com calma, infelizmente vivemos numa sociedade que repudia ocupações, não importa os argumentos constitucionais de direito à moradia e de proteção social; Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de crise econômica, pandemia; questões humanitárias, não adianta. É um tempo onde a falta de empatia, de solidariedade e de ignorância imperam, logo o poder público na maioria das vezes, não tem o menor pudor em promover despejos, e usa dessa moral desumana para piorar a situação. Raríssimas são as autoridades que possuem um olhar sensível e buscam mediar conflitos em ocupações de forma humana. Portanto, era preciso planejar. Tínhamos acordo, em caminhar um passo de cada vez.
Alguns dias depois a pessoa voltou a fazer contato, e disse que a ocupação se localizava num conjunto habitacional abandonado, de fato no Jardim Rio Branco e, estava pensando em uma aproximação para realizar um mapeamento social. Lhe disse que a situação era delicada tendo em vista ser um conjunto pertencente a um projeto destinado à moradia social. Mas que era possível pensar em algo. Ela como estudante de Serviço Social me enviou uma metodologia de trabalho que pretendia desenvolver junto às famílias, pedi um tempo para ler e uma semana depois, outra mensagem, de que as famílias a avisaram que ocorreria uma ação de despejo dali a uma semana. A ideia de ir com calma acabara de tomar um balde de água fria.
Decidi acessar algumas fontes de pessoas de confiança ligadas à moradia e indiretamente ao poder público, e descobri que a prefeitura havia realizado uma diligência ao conjunto em abril deste ano, com uma equipe da Seab (Secretaria de Habitação) entre outros aparelhos. Conversou com as pessoas e alertou da situação de remoção. Confirmando assim a informação confusa que tínhamos. Por fim descobri também que havia chegado recurso à cidade para dar andamento as obras que estiveram paradas há quase uma década. Uma notícia importante tendo em vista o déficit habitacional na cidade, contudo péssima para aquelas famílias, pensei.
Enviei um e-mail para a assessoria de imprensa da prefeitura solicitando informações oficiais sobre o recurso para as obras e o plano de remoção das famílias.
“Bom dia
Envio e-mail para solicitar informações a respeito de uma denúncia realizada por famílias que residem no conjunto habitacional abandonado no Rio Branco, segunda elas, funcionários da prefeitura estariam verbalmente as comunicando que serão despejadas nos próximos dias.
- Há alguma ação na justiça movida pela prefeitura de reintegração de posse?
- Há planejamento de remoção das famílias caso haja a reintegração.
- Há projeto futuro de término das obras?
Att,
Ailton Martins
Administrador do Blog Frequência Caiçara”.
Não tive resposta até a data de publicação deste texto.
Disparei um texto no blog Frequência Caiçara e no meu perfil no Facebook. Até então as centenas de informações confusas eram de que as pessoas haviam sido alertadas sobre um possível despejo. Pesquisei na internet sobre o processo judicial de reintegração de posse, não encontrei nada. Infelizmente, alguns são feitos administrativamente. Rasgam o estado de direito? Sim, mas quem se importa com a falência do Estado?
Com isso, na quarta-feira (05/08) da última semana que antecederia o despejo fui até o conjunto conhecer as famílias e entender a realidade em locus. Apurar o quê era boato e o quê era fato, até então as informações que eu tinha eram de fontes seguras, mas precisava por o pé no barro. O texto que eu havia compartilhado na rede, como de praxe recebeu algumas críticas nada afetuosas, em geral, colocando que eu faltava com a verdade, que a maioria das famílias que ocupava o conjunto não possuía necessidades, estava se oportunizando, e que o número de ocupantes crescia dia a dia e era recente. Logo uma fraude. A questão para mim era simples, por que a gestão atual permite que isso aconteça? E o quê irá fazer respeitando questões humanitárias?
Não fui sozinho ao conjunto, uma advogada que atua na área de moradia se prontificou a ir, e levou uma estudante de Serviço Social, juntas atuam na Campanha Nacional Despejo Zero. Outra estudante de Serviço Social com mais um jovem e uma jovem de um projeto social que entregam as cestas mensalmente às famílias, um professor da Rede Pública e um advogado que fez contato pelo Facebook também foram.
Ao chegar no local, a primeira constatação foi desoladora. Famílias empobrecidas vivendo em condições subumanas, num conjunto de prédios que deveria servir à moradia de interesse social, isto é, à população de baixa renda, mas foi abandonado, e encontra-se, hoje, se deteriorando debaixo de chuva e de sol, contudo, ainda assim, essas famílias, devido às condições o faz de teto; de abrigo.
Um cruel retrato de uma crise histórica no país. Particularmente penso que é também uma crise humanitária; civilizatória. Afinal, uma sociedade que permite e não se indigna com essa realidade brutal, está profundamente adoecida com seus valores e princípios.
No curto espaço de tempo em que estive nos prédios e conversei com algumas pessoas, em maioria mulheres. Penso que é importante reforçar, há muitas mulheres vivendo com crianças pequenas, cumprindo o papel de as únicas provedoras da família, pude perceber que a situação é ainda mais problemática do que imaginei. Há dezenas de pessoas vivendo no conjunto e pelo menos a maioria que falou comigo, não encontrava-se em situação confortável.
Enquanto o grupo que foi comigo conversava com as pessoas, tentando entender a situação, uma senhora veio até mim e se apresentou, disse que tinha 63 anos e residia desde o início do ano no conjunto, que havia se cadastrado recentemente no Auxílio Emergencial do governo, mas que andava muito preocupada com o despejo, o marido estava acamado, acabara de realizar um transplante, recebia auxílio do governo há sete anos por questões de saúde, mas foi suspenso no início deste ano.
“Eu não sei o que fazer, não tenho mais idade pra trabalhar com coisa pesada, e meu marido não está bem”.
Não tive muito a responder, só expliquei que tentaríamos evitar um despejo forçado.
Visitando alguns espaços de moradia que eram para serem apartamentos. Percebo que há alguns com portas numeradas, contudo, sem ninguém ocupando, uma moça me explica que muitas pessoas foram embora com medo, outras ela não sabe dizer, só ficou mesmo quem precisa, ressalta.
“Sabe, tem gente que já ganhou apartamento, vendeu. É difícil de pagar, as pessoas aqui são muito pobres, tem gente que vive de invasão em invasão, e tem quem se aproveita, até de quem precisa”.
Num corredor que liga um bloco a outro, crianças brincam de pega-pega, ao me verem com a câmera, sorriem, falam algo entre elas e descem correndo pela escada sem corrimão ou grade de proteção, observo elas desaparecerem entre as vigas de concreto de sustentação expostas.
Muita infiltração na parte de cima, as paredes sem rebocos… janelas e portas improvisadas com compensados de madeirites, ou lençóis simulando cortinas.
Os prédios não passam de esqueletos de concreto sem acabamento; sem telhados; janelas, portas… sistema de esgoto, é um local sem nenhuma segurança, ou seja, sem condições de habitação. Quem ousou habitar por necessidade deu um jeito como pôde; fiação elétrica e encanamentos clandestinos, entre outras gambiarras. A noite, de acordo com as famílias, só há o breu, por isso quem passa e olha o conjunto associa como um local perigoso, e dê certo modo não é mentira, afirma uma moradora.
Uma outra senhora muito simpática me convida para conhecer sua casa, no Bloco da 13, como chamam. Fala que está apenas há três meses no conjunto, está feliz, mesmo com as dificuldades, perdeu o emprego com a pandemia, na verdade, é diarista, logo com a quarentena perdeu os trabalhos, hoje, somente o filho quem está trabalhando como ajudante de pedreiro, mora só com o filho. Recentemente perdeu parte dos móveis numa enchente.
“Eu cheguei na cidade há dois anos, tava difícil onde eu morava, aí vim pra cá, tava de aluguel, apareceu esse vírus e ficou difícil, muito difícil”.
Muitas informações, muitas pessoas querendo falar, em geral todas assustadas com o despejo. Pergunto sobre o processo, nenhuma sabe explicar com precisão.
“Processo? Se tem, não sei, tem né?”.
“Eu trabalhava na ponte de ambulante, a ponte abriu, ficou difícil’
“Eu já vim de outro despejo”
“Eu tava lá no sambaiatuba”
“Eu tava lá nos predinhos do Bitaru”
“Mas a gente não pode ficar aqui, por quê?”
“Ninguém vai sair não”
“Eu sou mãe e pai, sou eu e minhas crianças, eu tenho esse pequeno aqui, e tenho filha, nem posso deixar em qualquer lugar, abrigo, como vai ser? E a segurança? Não dá pra colocar a gente na rua assim não”.
Algumas pessoas buscando soluções por meio de “heróis e heroínas” na política.
“E se a gente chamar o candidato fulano, e a candidata beltrana?”
“Mas se mudar de prefeito aí a gente perde tudo?”.
Me limito ao silêncio, não costumo confiar em político, nem à esquerda e nem à direita. Muitos mitos, boatos e falta de instrução, em torno da realidade que era uma só, gostando ou não, quem pode decidir é a gestão atual, portanto precisávamos ir até a Seab conversar com o secretário de habitação, encontrar um canal de diálogo, e buscar a devida e justa proteção social que é de responsabilidade da prefeitura.
Reunião com a Seab
Conseguimos no final do mesmo dia uma reunião com o secretário de habitação, Marcos Bezerra e com o secretário adjunto Marcelo Amaral. A advogada Gabriela Ortega, e o advogado Rui Elizeu acompanharam a reunião juntamente com mais duas pessoas representantes da ocupação. Não participei, mas, o ponto debatido foi de encontrar uma solução pacífica de proteção às famílias, tendo em vista que a prefeitura não pretende perder o recurso das obras.
Segundo Ortega, inicialmente a reunião estava um pouco tensa, mas teve um bom desfecho, e um encaminhamento de mapeamento social foi indicado para identificar as condições sociais de cada família, e a partir disso, construir um plano de remoção e de assistência. O secretário Marcos Bezerra se responsabilizou de reunir-se com o secretário de Assistência Social, e discutir a questão.
Na última quarta-feira (12/08) as famílias concordaram de a prefeitura realizar o mapeamento social, contudo, ainda não há nenhum indicativo no que tange a proteção social.
O único fato concreto é o impasse, em como dar o encaminhamento nas obras destinadas a outras pessoas também em situação de vulnerabilidade social, sem desassistenciar as que ocupam os prédios. Como citei acima no texto, a realidade dessas famílias é a pura representação de crise humanitária; de esgotamento de modelo civilizatório.
Anseio para que o poder público haja com sensibilidade. Uma ação de despejo mesmo quando amparada pela lei é um ato de violência, fere a dignidade e os princípios humanos.
Fonte: Freqüência Caiçara