Por Anderson Alves Esteves
Herbert Marcuse (1898 – 1979)
O risco de considerar um autor atual é pensar sua produção como aplicável mecanicamente a formações sócio-históricas diferentes daquela sobre a qual se debruçou: a primeira encerra as segundas em uma camisa de força. Mas, se o próprio método empregado supõe e respeita a história como imprescindível para a produção teórica e oxigena, perenemente, o quadro conceitual com novas dimensões das estruturas social e psíquica em transformação, a teoria exige reelaboração de si mesma para dizer algo acerca da realidade em lugar de apartar-se dela, sedimentar-se e substituí-la por discursos autorreferencias.
A Teoria Crítica de Herbert Marcuse desempenhou a atitude de constante torções conceituais, “extrapolações”, ao interpretar as mudanças do capitalismo e das reações a ele sem compulsão à repetição de conceitos petrificados – trata-se de uma produção antidogmática com a qual aprende-se a analisar a realidade social sem mutilá-la. A atualidade do pensamento de Marcuse não reside, apenas, em considerar problemas que continuam candentes, ela repousa, outrossim, na necessidade de construir, ininterruptamente, formas de conhecimento que consigam explicá-los: é atual por ser um clássico, transforma os conceitos canônicos e, assim, canoniza-se.
O projeto emancipatório do Autor expressa tais considerações: tratou de questões concernentes ao capitalismo tanto na fase liberal como na monopolista, mostrou a intensificação da dominação e os limites do liberalismo e do marxismo ortodoxo: no Idealismo Alemão, as pretensas autonomia e crítica que conduziram a busca por felicidade e liberdade à interioridade não alcançaram a emancipação; na experiência do “socialismo em um só país”, o fetichismo de conceitos, partido e de classe social transplantou automaticamente o vanguardismo centralizado de certa formação sócio-histórica a todas as outras lutas sociais do planeta, manteve a dominação peculiar ao capital e também não palmilhou na direção da libertação. Marcuse, ao contrário, elencou referências em sua obra, oriundas da Filosofia, da Sociologia, da Economia, da Psicanálise, da Linguística, da Literatura etc., e atualizou-as à luz das questões do século XX para explicá-lo, para explicarem-se e para [re]construir explicações.
Na Teoria Crítica do Autor, a dialética entre sujeito e objeto evita a negligência com a qual o marxismo ortodoxo tratara a individualidade e há a explicação da miríade de “novas formas de controle social” que garantiram a sobrevida do capitalismo, complicaram a efetivação do projeto emancipatório tal como pensado por Marx [obra dos próprios trabalhadores] e colocaram, por algum tempo, a luta de classes em latência, como o Autor argumentou em O homem unidimensional [1964]: a tecnologia [ao dispor a natureza e o homem como objetos de dominação e vincular o poder político à produção], a produção e a distribuição de falsas necessidades [para todas as classes e estratos sociais havia bens de consumo para manipular as pessoas a tornarem como suas as necessidades de outrem, inclinando-as à heteronomia], a indústria cultural [construtos estéticos colonizados pela forma-mercadoria e que integravam os átomos sociais como dentes da engrenagem social pela estratégia da diversão e do consumo], a estrutura psíquica dos átomos sociais [encolhimento do ego e formas de socialização que aculturavam as pessoas, desprivatizando-as desde o berço, na perspectiva do capitalismo monopolista como a única realidade possível], a locução [unificação de termos antagônicos, abreviação de sentenças, eliminação de conteúdos críticos e repetição de termos hipnóticos] e a política [integração da oposição à ordem] arvoraram uma realidade unidimensional que concatenou o domínio objetivo/institucional e o subjetivo, que administrou a sociedade e bloqueou a luta de classes eficientemente – a ideologia deixava de ser, apenas, discurso e materializava-se na produção e na distribuição de mercadorias, convocava e integrava o proletariado na manutenção do status quo em todos os âmbitos da vida, a saber, nas fábricas, nos escritórios, na mobilização para a guerra, no lar, na diversão e no lazer, no discurso, nas eleições, na sexualidade – a dominação tornara-se mais intensa, contudo mais imperceptível, tecnológica, higiênica, divertida. A própria teoria tinha de se reelaborar para conseguir contemplar a nova realidade, assim, Marcuse extrapolou as categorias psicanalíticas em Eros e civilização [1955]: a repressão tornara-se mais-repressão; o princípio de realidade, princípio de desempenho, a sublimação, dessublimação repressiva.
Seria tal dominação perene? Mais uma vez, o Autor ensina a pensar antidogmaticamente: a unidimensionalidade descrita no início da década de 1960 convertera-se em possibilidade de revolta ao fim da mesma década e ao início da seguinte. No Ensaio sobre a libertação [1968] e em Contrarrevolução e revolta [1972] – e mesmo anteriormente, como na conclusão de O homem unidimensional – foram expostos grupos de outsiders nos quais pulsavam demandas por liberdade: a realidade que edificara a sociedade unidimensional mostrava que a opulência vencera a escassez e tinha condições de universalizá-la em lugar de circunscrevê-la a grupos privilegiados, que a miséria, a desigualdade, a manutenção do trabalho alienado, a renúncia, o ascetismo, a repressão às pulsões, as guerras, o imperialismo, a manipulação da informação, o racismo, a misoginia, a agressão à natureza eram intoleráveis e obsoletos.
Tais grupos que reivindicavam a liberdade elaboraram novas formas da Grande Recusa e eram compostos por intelectuais [denunciavam a pseudoneutralidade acadêmica e científica, recordavam outras possibilidades de vida, não abriam mão do caráter crítico da razão e colocavam em ação o trabalho de educação política], estudantes [lutavam por direitos civis, políticos, sociais e humanos; demandavam reforma universitária que descolonizasse a educação de fins econômicos e militares; carreavam os protestos dos campi para outras instituições sociais], movimentos de libertação do Terceiro Mundo [denunciavam a miséria e a exploração intoleráveis nas quais suas bases viviam, o conluio entre burguesias nacionais dos países subdesenvolvidos e o imperialismo; as ações do movimento provocavam ações de solidariedade, nos países desenvolvidos, contra as intervenções militares deles no exterior], negros e população de gueto das grandes cidades [discriminados, alvos de racismo, concentrados em áreas de risco e principais vítimas de toda sorte de violências; seus protestos podiam contagiar grandes contingentes em pouco tempo], movimento de mulheres [denunciante da agressividade do princípio de desempenho masculino, reivindicador da vida como um princípio em si mesmo e aberto à perspectiva de que a superação da civilização patriarcal e burguesa condiciona a libertação tanto da mulher como do homem], ecologistas [denunciantes da agressividade ao meio-ambiente, reivindicadores de novas instituições, novas relações humanas, de outro tipo de progresso que não o quantitativo] e pacifistas. Em conjunto, tais grupos podiam desbloquear a luta de classes e contribuir com a efetivação do projeto emancipatório à medida que catalisavam a reivindicação de novas formas de vida e que podiam despertar a classe operária tradicional, tal como ocorrera em Maio de 1968. Nos outsiders, Eros pulsava de maneira desagrilhoada de Thanatos; portanto, reivindicavam um tipo de civilização que não recorresse à repressão como subjacência, que dessublimasse a pulsão de vida de modo a não mais relegá-la à memória, à fantasia, à imaginação, ao sonho, e, institucionalmente, aos museus; tratava-se de uma nova sensibilidade a demandar a “civilização libidinal” – mais uma vez, extrapolação da Psicanálise – que transformaria infra e superestruturalmente as instituições, o meio-ambiente, os homens e as mulheres. Esses dissidentes, e não mais o proletariado tradicional, que desencadeariam o processo emancipatório e fariam a mediação entre o princípio de desempenho e um novo princípio de realidade. O argumento da catálise também extrapolara o materialismo histórico tal como interpretado pelo marxismo ortodoxo, este fetichizara o proletariado tradicional como “vanguarda” da transformação qualitativa, mas a conjuntura do momento mostrava que ele tinha de ser mobilizado por outros ativistas.
Portanto, os outsiders vicejaram outra esquerda, a Nova Esquerda: heterodoxa, vincada por uma base social mais ampla e que incluía setores da classe média que haviam caído no domínio total dos monopólios gigantescos e engrossavam o contingente dos descontentes. As ações da Nova Esquerda tinham como alvo a totalidade da sociedade e atacavam, inclusive, os integrados, tais como os partidos comunistas oficiais dos países do Ocidente e suas associações sindicais reformistas e amortecedoras da luta de classes. Mas, ao mesmo tempo, a pretensão era de catalisar o proletariado tradicional para engajá-lo na perspectiva da mudança social qualitativa. Capilarizada – e sem deixar de tentar construir uma Frente Única – e dedicando-se à paciente atividade de educação política, a Nova Esquerda procurava descolonizar as consciências dos átomos sociais, respeitar a individualidade e entrelaçar política e psicologia, não operar de acordo com a forma leninista de organização e em seu lugar prezar por conselhos descentralizados e pela democracia direta, dedicar-se à longa marcha mediante as instituições e manter contrainstituições denunciadoras dos limites e da crise do capitalismo monopolista, seja ele envernizado como sociedade de bem-estar [welfare] social ou de beligerância [warfare]. Para Marcuse, Nova Esquerda e Teoria Crítica prenunciavam novas instituições e seres humanos, configuravam-se como a “única esperança” de verdadeira transformação social que respeitasse, aspirasse e exigisse a efetivação da civilização libidinal, também denominada pelo Autor como ethos estético e socialismo integral.
Utopia? Certamente, mas sem sentido pejorativo: o princípio de realidade aspirado pelo alvitre de desentrelaçamento de libido e agressividade supõe o grau de desenvolvimento alcançado pelas sociedades industriais avançadas, mas divorciando tecnologia da dimensão instrumental para casá-la com a beleza [técnica e arte já compartilharam o belo como causa final, tal como se verifica na arquitetura grega] e metamorfoseá-la em razão pós-tecnológica [Marcuse mostrou as ambiguidades da tecnologia e, assim, também extrapolou os cânones da Teoria Crítica]. Se efetivado, o projeto que demandava a beleza inclinaria a realidade a converter-se em obra de arte, a tornar o belo a “forma” da sociedade. O belo também seria força produtiva, colocaria a vida e a si como fins em si mesmos em lugar da reprodução cega e automática de capital. A utopia de Marcuse era concreta [menção a Ernst Bloch] por ser histórica [havia condições para eliminar as mazelas sociais da sociedade de classes e as possibilidades utópicas não eram “absolutamente utópicas”], estética [orientada para a invenção de novos maquinário e instituições voltados à forma estética] e fundamentada [por articular a nova sociedade com o novo homem e não apostar, apenas, em uma inversão no sinal do modo de produção e/ou em um determinismo tecnológico]. Trata-se, para polemizar com a tradição engelsiana, de um socialismo que não levava da utopia à ciência, mas “da ciência à utopia” à medida que contava com o estágio maduro das forças produtivas e a superação da dimensão instrumental a que estavam presas para, assim, construir o ethos estético, o socialismo integral, o novo princípio de realidade utópico-concreto como uma civilização que fecundasse necessidades e satisfações livres da agressividade, instituições que pacificassem a existência em lugar do hodierno desperdício [injustificável] de vidas.
O projeto é político e estético, por isso, o papel da arte não é menor para a efetivação dele: mas esta é importante politicamente ao preservar-se autônoma, é engajada ao desengajar-se politicamente: harmonia, som, contraste, proporção, simetria, equilíbrio, cores e métrica transfiguram e negam a realidade pela forma, atacam as raízes do capitalismo dentro dos indivíduos, aguçam suas faculdades sensoriais e cognitivas, não reprimem a fantasia [emancipar os sentidos é tão importante quanto a razão e, ao não supor a divisão entre ambos (como em Schiller), a sensibilidade ganha estatuto de força produtiva e a racionalidade não despreza a imaginação – ambas colaboram com a humanização progressiva e evitam a repetição do “velho Adão”]. Mesmo usando o material que partiu do mundo objetal, a forma metamorfoseia-o e torna-se, ela mesma, conteúdo: eis o que Marcuse denominou “mimese crítica”. Como o princípio de desempenho aprisionou a felicidade e a liberdade na memória, na imaginação, no sonho, a arte recorda-as mediante a conexão com Eros e o retorno do reprimido, insiste em pensar instituições, artefatos e seres humanos belos [menção à ideia hegeliana de redução estética]. A despeito de poder produzir fruição e colaborar com a ordem estabelecida [tema no o qual o Autor se debruçou por toda a carreira], a arte continua denunciando-a e mantém viva a hipótese de que Orfeu e Narciso são tão importantes quanto Prometeu. Eis um clássico e um contemporâneo.
REFERÊNCIAS
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*Doutor em Filosofia [PUC/SP], professor do IFSP e autor do lançamento Do socialismo científico ao socialismo utópico: o projeto emancipatório em Herbert Marcuse – política e estética nas décadas de 1960 e 1970. Curitiba: CRV. 372 p