Autoridades municipais favorecem modelo de cidade com população mais concentrada, para diminuir gastos com criação de nova infraestrutura. Especialistas veem elitização no processo, e apontam necessidade de planejamento urbano inovador para lidar com mudanças climáticas
Por: Marcos do Amaral Jorge
Em: Jornal da Unesp
Pela primeira vez desde sua fundação, em 1554, a cidade de São Paulo possui mais apartamentos do que casas. É o que apontou uma nota técnica publicada em 2021 pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos centros de Pesquisa, Difusão e Inovação ligados à Fapesp. O levantamento analisou registros de imóveis, coletados entre 2000 e 2020, e armazenados na Secretaria Municipal de Fazenda da Prefeitura de São Paulo.
Segundo os dados compilados pelo CEM, o processo de verticalização da capital está acontecendo em ritmo acelerado. Se em 2000 as residências em casas (horizontais) representavam 1,23 milhão de imóveis, no ano 2020 esse número passou a 1,37 milhão, um aumento modesto de 11,8%. Por outro lado, os apartamentos saltaram de 767 mil unidades em 2000 para expressivos 1,38 milhão em 2020, uma explosão de 80% no período. Em termos de metragem, a área total somada dos apartamentos na cidade subiu de 386,3 milhões de m2 em 2000 para 534,8 milhões de m2 em 2020.
É verdade que o estudo deixou de fora as edificações classificadas como precárias, e que equivalem a cerca de 27% dos domicílios. Porém, segundo especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp, os resultados indicam a consolidação de um modelo de cidade vertical e mais adensada.
Essa tendência tem se desenvolvido com o apoio das autoridades municipais e dos técnicos da área de urbanismo. Desde 2014, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, a legislação municipal que estabelece regras para o desenvolvimento urbano da cidade, vem estimulando a construção de grandes edifícios principalmente nos eixos de transporte público, como os corredores de ônibus e as estações de metrô e de trem.
Adalberto Retto Jr., que é professor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp no câmpus de Bauru, explica que os defensores desse modelo de cidade argumentam que a estratégia de concentrar a população em áreas específicas — no caso, aquelas onde os prédios estão sendo erguidos — permite otimizar o uso da infraestrutura pública, como o transporte coletivo, e facilitar o acesso a comércio e serviços, além de potencializar os encontros e a dinâmica da vida urbana.
Além das autoridades municipais, o mercado imobiliário também tem preferência pela venda de residências em edifícios. Maria Encarnação Sposito, especialista em geografia urbana e professora no câmpus da Unesp em Presidente Prudente, ressalta que, para as empresas ligadas ao mercado imobiliário, a verticalização também é bastante interessante. “A verticalização é o formato mais interessante para o mercado imobiliário. Dessa forma, é possível embutir o custo do terreno em que o prédio foi construído no preço de todos os apartamentos à venda”, diz. Considerando o alto valor da terra numa cidade como São Paulo, em especial nas áreas próximas aos eixos de transporte, os prédios representam uma oportunidade de maximizar o lucro do empreendimento.
Verticalização para quem?
Economista e professor do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da Unesp no câmpus de Presidente Prudente, Everaldo Melazzo chama a atenção para outro dado levantado pela nota técnica: a mudança do perfil das residências ao longo desses últimos 20 anos. Segundo o documento, o padrão das residências formais está passando por um processo de elitização.
Os dados do CEM apontam uma forte tendência de crescimento do número de apartamentos de médio padrão e um crescimento mais sutil dos apartamentos de alto padrão. Quando se considera a área construída, entretanto, há um forte aumento de apartamentos de médio e alto padrão. A diferença se explica pela maior metragem dos imóveis de alto padrão. “A cidade parece ter passado nessas duas décadas por uma transição para uma predominância de tipologias residenciais verticais, sobretudo de padrões médio e alto”, concluem os autores.
Para Melazzo, a verticalização e o adensamento não são algo necessariamente ruim para uma metrópole como São Paulo. “A questão está mais presente na mudança do padrão dessas residências, que indica claramente quem tem acesso a essa verticalização”, argumenta.
O docente de Presidente Prudente destaca que habitações precárias, como favelas e cortiços, não integraram o levantamento feito pelo CEM, da mesma forma que não estão incluídos dados dos municípios da Grande São Paulo. “Quando pensamos na dinâmica urbana, a cidade de São Paulo é uma parte do processo. Neste processo, o encarecimento do preço da terra e mudança das tipologias, permeado pelos interesses dos agentes imobiliários, expulsa para as bordas e para a região metropolitana a população que não tem renda ou crédito”, afirma.
Nessa linha, o estudo chama a atenção para uma queda pontual das residências horizontais de baixo padrão logo após o Plano Diretor Estratégico de 2014 e antes da aprovação do zoneamento de 2016. Segundo o documento, é neste intervalo “que deve ter se concentrado a tendência de demolição para substituição pelos usos que mais cresceram, em especial verticais de médio e alto padrão”, afirma o texto.
Para Maria Encarnação Sposito, a falta de políticas públicas consistentes que contemplem o planejamento de habitações populares colabora para que a verticalização seja orientada principalmente pelo mercado imobiliário que, naturalmente, direciona seus produtos para um público consumidor capaz de pagar por eles.
Sem uma política pública bem estruturada que estimule o mercado a trabalhar com outra faixa de renda, explica a docente, as empresas continuarão privilegiando apartamentos de médio e alto padrão.
“Tendo em vista os preços desses apartamentos, o mercado está se voltando para alguém que, provavelmente, já possui um imóvel.”
Maria Encarnação Sposito
Com a verticalização, novos problemas
Para Retto Jr., a tendência de verticalização da capital exige novas reflexões sobre o desenvolvimento da cidade de modo a ordenar esse modelo de crescimento. Ele destaca, por exemplo, a necessidade de lidar com a influência das mudanças climáticas sobre os centros urbanos, que pode se manifestar através da formação de ilhas de calor.
No entendimento do professor, as últimas legislações que orientaram o crescimento da cidade, o Plano Diretor Estratégico, em 2014, e a Lei do Zoneamento, em 2016, contemplaram principalmente o uso do solo, ou seja, foram pensadas para regular o uso da cidade por seus habitantes. Agora, eles precisariam contemplar também os aspectos climáticos e ambientais associados ao urbanismo. “Novas discussões terão de trabalhar também esses elementos de morfologia, voltados para criar um ambiente mais permeável”, explica.
O professor da Unesp diz que é preciso discutir legislações que induzam uma nova tipologia nos prédios, isto é, estimulem a adoção de algumas características na sua construção capazes de minimizar a formação dessas ilhas de calor. Uma das sugestões é que os prédios sejam projetados de forma que o vento possa transitar não apenas entre os edifícios, mas por dentro deles, colaborando para o resfriamento da cidade.
O urbanista cita como referência dessa estrutura a proposta da Superquadra, projetada pelo arquiteto Lúcio Costa e que foi adotada em Brasília. O conceito buscava o equilíbrio entre o adensamento, a verticalização e a permeabilidade do ar por meio da elevação dos edifícios do solo. “Esse exemplo precisaria ser analisado com muita atenção no momento de pensar parâmetros legislativos que iriam compor um novo zoneamento”, diz o docente.