Cidade Peruíbe

A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DAS AVES LIMÍCOLAS MIGRATÓRIAS EM PERUÍBE E OS FACTÓIDES INDIVIDUALISTAS TRAVESTIDOS DE DEMANDAS COLETIVAS

Por Mari Polachini

 

    O país passa por um momento sui generis de sua história, onde a ignorância dos processos de construção das políticas públicas, amparada pela facilidade com que se disseminam informações, falsas ou não, pelas mídias sociais, está pervertendo a lógica das questões coletivas que buscam soluções conjuntas. Demandas justas, cujo atendimento aparentemente seria simples, acabam deturpadas e manipuladas diante da opinião pública.

    As aves limícolas são aquelas que dependem de ambientes úmidos e buscam alimento nas zonas entre marés e margens de corpos aquáticos, especialmente lagunas costeiras e estuários, embora possam ocupar uma diversidade de habitats. Incluem-se, dentre elas, batuíras, maçaricos, narcejas e ostreiros, sendo que um grande número dessas espécies são aves migratórias

    As migrações dessas aves ocorrem no outono e primavera de cada ano, quando milhares de indivíduos cruzam os Hemisférios Norte e Sul para fugir do inverno nos sítios reprodutivos e descansar em sítios de invernadas no Brasil, onde frequentam as regiões costeiras. 

    As aves migratórias são patrimônio comum dos países por onde passam e têm sido objeto de esforços internacionais para sua conservação. O Brasil possui um Plano de Ação Nacional para Conservação de Aves Limícolas em conjunto com organizações internacionais, que tem como um dos seus objetivos garantir a segurança dessas aves ao longo de sua rota migratória, sendo signatário de acordos internacionais relacionados à proteção das espécies migratórias e dos seus habitats, como a Convenção Internacional para Conservação da Fauna, Flora e Belezas Cênicas das Américas (Convenção de Washington), a Rede Hemisférica de Reservas para Aves Limícolas e a Convenção sobre Zonas Úmidas (Convenção de Ramsar).   

    Nos diversos lugares por onde passam, essas aves sofrem interferências antrópicas negativas e a interação com populações humanas tem sido a grande responsável pelos impactos diretos neste grupo. As perturbações provocadas pela visitação e trânsito de pessoas nos locais de alimentação dificultam o ganho energético das aves, o que interfere na sua capacidade de voo, no sucesso reprodutivo e pode até mesmo provocar o aumento da mortalidade (Bruno Lima e Karina Ávila, Plano de ação nacional para a conservação das aves limícolas).

    No município de Peruíbe, as aves limícolas são objeto de estudo da bióloga Karina Ávila (matricula BAC190138), na sua Pós-graduação em Biodiversidade de Ecossistemas Costeiros, na UNESP de São Vicente e também foram largamente estudadas pelo biólogo Cesar Cestari (Cestari, 2008). Ambos os pesquisadores comprovam a importância das praias da cidade como ponto de descanso e alimentação para essas aves. Elas também utilizam a foz dos pequenos canais que desaguam na praia para banhar-se e limpar as plumas. Costumam chegar extremamente cansadas e famintas da longa viagem e a perturbação humana pode leva-las à morte por exaustão. 

    A cada ano aumentam os impactos causados a essas aves por cães que circulam soltos pelas praias e pelo trânsito de veículos na faixa de areia. Recentemente, um raro Maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus) que havia sido fotografado na praia do Ruínas pelo observador de aves local, o Sr. Pedro Behne, foi atropelado e morto na faixa de areia por um carro em alta velocidade. Era uma ave anilhada, que estava regressando à América do Norte, sendo o fato registrado e devidamente comunicado aos responsáveis pela anilhamento do espécime.

    Um dos maiores pontos de afluência das aves limícolas migratórias em Peruíbe é a praia do Tanigwá, defronte à Terra Indígena Piaçaguera, onde foram avistadas e identificadas 17 espécies diferentes de aves, originárias do círculo Polar Ártico, Canadá e Alasca, grande parte delas com suas populações em declínio, algumas já consideradas em situação de vulnerabilidade e até ameaçadas de extinção. Esse local representa o último trecho de praia da Baixada Santista onde a Mata Atlântica se estende desde o Parque Estadual da Serra do Mar até o oceano, formando um corredor desse bioma que presta serviços ecossistêmicos imprescindíveis à nossa biodiversidade. Com a sua faixa de areia menos antropizada, apresenta dunas, jundu e restinga, com ocorrência de fauna e flora diversificada. 

    Infelizmente, essa praia, que faz divisa com Itanhaém, sofre com o intenso fluxo de carros e motos, muitos dos quais trafegam livremente pela faixa de areia, usando-a como via de acesso ao município vizinho, hábito que remonta à época em que essa praia era a única via de ligação entre as duas cidades.

    Por ser afastada das áreas mais frequentadas e movimentadas, acaba sendo utilizada para a prática de atividades irregulares, como corridas de cavalos, “rachas” de veículos, voos de parapentes; que somadas ao tráfego de veículos, tem colocado em risco a vida dos banhistas e observadores de aves que ali frequentam e provocado danos irreparáveis às aves que se utilizam daquele local durante sua jornada migratória, muitas  ameaçadas a nível internacional, como o Maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus), o Maçarico-acanelado (Calidris subruficollis) e o Maçarico-rasteirinho (Calidris pusilla). 

    Em meio a diversas ações encaminhadas pelo nosso grupo ambientalista, o MoCAN, na defesa desse ecossistema fundamental à manutenção da biodiversidade de espécies em risco, encaminhamos denúncia ao Conselho Municipal de Proteção e Bem-Estar Animal de Peruíbe, no dia 07/11/2019, em reunião que contou a presença do Diretor do Trânsito da cidade, através de uma explanação técnica dos biólogos Karina Ávila e Bruno Lima, embasada por fotos e filmagens do local, onde deixaram clara a necessidade de coibir esse tráfego irresponsável,  fazendo cumprir a lei municipal que proíbe o trânsito de veículos em faixa de areia, exceção feita aos veículos de trabalho, como bombeiros, monitoramento e resgate de animais, PM Ambiental, limpeza de praia, SAMU e afins.

    Essa área já era objeto de várias denúncias, há anos, partindo de diferentes setores da sociedade civil, tendo sido levada até mesmo ao CONDEMA, em algumas ocasiões, mas sem a propriedade que nos permitisse exigir qualquer atitude da municipalidade.

    Dessa vez, amparados pela defesa das 17 espécies de aves limícolas e migratórias que dependem daquela área para repouso, alimentação e/ou nidificação, identificadas como vulneráveis e até em extinção, amparadas por legislação nacional e internacional de proteção, conseguimos encaminhar a formação de um Grupo de Trabalho que incluiu o Sr. Márcio Bispo, Diretor de Trânsito e integrantes do Conselho Municipal de Proteção e Bem-Estar Animal

    Essa comissão reuniu-se com o Secretário Municipal de Defesa Social, Sr. Romeu Dutra; a Secretária e o Diretor de Meio Ambiente, Dra. Rosangela Barbosa e Sr. Marcelo Mouro; o Chefe de Gabinete da Prefeitura, Dr. Felipe Colaço, e elaborou um plano com o intuito de inibir o acesso de veículos não autorizados à faixa de areia em regime de urgência, diante da chegada da temporada. Ficou estabelecido o fechamento dos acessos irregulares à praia com a colocação de pedras (aquelas que rolaram na Serra do Guarau e estavam armazenadas ao lado do Ginásio de Esportes); a colocação das placas indicando a proibição do trânsito de veículos, permitindo assim a aplicação de multas; a intensificação das fiscalizações; a realização de forças tarefas e o contato com o coordenador de trânsito de Itanhaém para ações conjuntas na divisa dos municípios.

    Com a aproximação da temporada e o não cumprimento do prometido pela administração pública, o COMBEM encaminhou ao MP a denúncia apresentada à plenária, cobrando a responsabilidade da prefeitura. A denúncia foi acatada pelo promotor de justiça de Peruíbe, Dr. Orlando Brunetti Barchini, que exigiu da prefeitura o cumprimento do acordo.

    Durante a colocação dos bloqueios aos acessos irregulares, descobriu-se que uma das Aldeias indígenas existentes na Terra Piaçaguera, instalada há apenas 1 ano e 6 meses, tinha como única entrada a faixa de areia. Diante disso, as pedras que bloqueavam essa Aldeia foram retiradas e o Depto de Trânsito liberou o tráfego para os carros dos seus integrantes, mediante cadastro no órgão, assim como a permissão para a passagem de veículos de indígenas que se dirijam a essa Aldeia, até que fosse providenciado um acesso interno, pela Terra Indígena Piaçaguera, para essa comunidade.

    Antes do início da ação de fechamento das vias irregulares de passagem de veículos, houve uma prévia consulta à FUNAI pela Secretaria do Meio Ambiente, que através do seu funcionário Sr. Gilberto Bueno não viu impedimento para a colocação das pedras, indicando que não haveria dano algum às comunidades indígenas e também não fez referência à existência desse aldeamento sem acesso.

    Nosso empenho, não só como integrantes do coletivo ambientalista Movimento Contra as Agressões à Natureza, o MoCAN, mas também como representantes da sociedade civil no Conselho de Proteção e Bem Estar-Animal e no Conselho de Defesa do Meio Ambiente, é impulsionar a municipalidade para que cumpra seu papel na defesa do nosso patrimônio ambiental e dos animais que dele dependem.

    Entretanto, uma ação clara e legítima, que visou apenas o cumprimento da lei que proíbe o trânsito de veículos pela faixa de areia em prol da fauna e flora locais, além de visar a proteção do munícipes e turistas, acabou por incomodar algumas pessoas, que se arvorando a defesa das comunidades indígenas, passaram a divulgar o plano traçado para inibir o trânsito de veículos como um ataque às aldeias indígenas ali situadas. Ignorando a possibilidade do acesso por outras vias, exigem que seja permitida a passagem de veículos de turistas que se dirigem às várias Vivências que são organizadas por algumas das aldeias que se encontram na TI Piaçaguera, alegando que a entrada pela praia faz parte do encanto do evento, sem levar em conta a infinidade de vidas que dependem desse ecossistema para sobreviverem.

    Acreditamos que agindo dessa maneira, pretendem conquistar a opinião pública no sentido de lhes dar apoio em uma reivindicação insustentável, que é continuar a transitar livremente com seus veículos pela praia, sobrepujando-se aos direitos naturais das aves que ali se encontram, do respeito ao meio ambiente, da segurança dos cidadãos e das leis municipais.

    A defesa da praia do Tanigwá é necessário para o fortalecimento das comunidades indígenas guardiãs da Terra Indígena Piaçaguera. Sem um meio ambiente preservado, não há vida.   

 

P.S. Dia 20/12, após uma longa reunião entre a promotoria, representantes da Aldeia Tapirema, a Secretaria do MA, Secretaria Defesa Social, a Guarda Municipal e a Presidenta do COMBEM, ficou acordado e foi reiterado o direito de passagem dos carros cadastrados dos moradores da Aldeia pela faixa de areia até que construam um acesso interno, cujo projeto deverão apresentar em reunião já agendada para o início de Janeiro de 2020, e da isenção de multa dos carros de indígenas que se dirijam a essa Aldeia. As demais Aldeias existentes no local não enviaram representantes à reunião e não apresentaram contestação alguma ao fechamento das vias irregulares de acesso de veículos à praia.

 

Mari Polachini

presidenta do COMBEM

presidenta do MoCAN

 

SÍTIO RAMSAR

   

 

 

    A Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, realizada em 1971 na cidade iraniana de Ramsar, é um tratado intergovernamental que tem por intuito proteger os habitats aquáticos relevantes para a conservação das aves limícolas e aquáticas migratórias e “também as demais áreas úmidas, de modo a promover sua conservação e uso sustentável, bem como o bem-estar das pessoas humanas que deles dependem”. 

    O Brasil soma hoje 27 Sítios na Lista de Ramsar, o que nos propicia a obtenção de apoio e fundos internacionais para o desenvolvimento de pesquisas e financiamento de projetos. Em troca, o país se compromete a manter as características ecológicas dessas áreas, conforme previsto no Plano Nacional de Áreas Protegidas (PNAP – Decreto nº 5.758/06).

     A Área de Proteção Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe é uma das áreas inseridas na Lista de Ramsar.

 

 https://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-aquatica/zonas-umidas-convencao-de-ramsar.html

http://googleweblight.com/i?u=http://www.icmbio.gov.br/portal/faunabrasileira/plano-de-acao-nacional-lista/3567-plano-de-acao-nacional-para-conservacao-das-aves-limicolas&hl=pt-BR

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