O novo coronavírus avança para o interior das aldeias no Mato Grosso do Sul a cada dia. Sem seus territórios demarcados ou expulsos das áreas tradicionalmente ocupadas, os povos indígenas se veem obrigados a viver em retomadas ou acampamentos próximos às rodovias e cidades. Amontoados e sem políticas públicas, eles têm buscado estratégias coletivas de enfrentamento à pandemia.
Em maio deste ano, o Regional Mato Grosso do Sul, do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), publicou uma nota sobre a pandemia da covid-19 entre os Kaiowá e Guarani, alertando para o rápido crescimento de infectados entre indígenas no Estado – situação agravada pela crise humanitária na reserva indígena de Dourados.
“Amontoados e sem políticas públicas, os indígenas têm buscado estratégias coletivas de enfrentamento à pandemia”
Neste mesmo período, a Aty Guasu, assembleia política e de direito dos Povos Guarani e Kaiowá, publicou uma carta denunciando a gravidade desta realidade em todas as aldeias do Cone Sul do Estado, que reúne mais de 50 mil pessoas, estabelecendo o “estado de emergência”. De olho neste cenário alarmante, passaram a denunciar continuamente a inoperância dos setores da saúde e do Estado.
A chegada do vírus
Composta por duas aldeias, Bororó e Jaguapiru, e oito retomadas, a Reserva de Dourados é a mais populosa do país, situada a apenas 4km do centro da cidade, e foi a primeira a ser infectada pelo vírus no Estado. Com pouco espaço para o cultivo e subsistência, muitos indígenas precisam garantir o sustento fora da reserva – normalmente em frigoríficos e usinas de açúcar.
O caminho do trabalho para casa abriu a porta para vírus até a Reserva. Uma indígena que trabalhava no frigorífico da JBS Foods Seara em Dourados, ao lado de, aproximadamente, mais 30 indígenas, acabou sendo contaminada na indústria, que funcionava sem condições sanitárias adequadas e testes para covid-19. Toda a família dela também foi contaminada.
“A juventude tem cumprido um papel fundamental nas ações”
Como as casas nas aldeias são próximas, o distanciamento social é impossível. A busca de local adequado para os indígenas contou com o apoio e solidariedade de Dom Henrique Aparecido de Lima, bispo da Diocese de Dourados. “Assim, os 16 indígenas infectados foram acolhidos num espaço da Diocese de Dourados, com o acompanhamento da Sesai puderam passar pelo período de isolamento social”, relata o coordenador do Regional Mato Grosso do Sul, Geraldo Augusto Alkmin.
Ação conjunta
Dada a gravidade e o avanço do vírus, o Cimi no Mato Grosso do Sul tem implementando uma série de ações de apoio junto a Aty Guasu, Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá), RAJ (Retomada Aty Jovem).
Para além disso, está constituída uma Rede de Solidariedade que tem mobilizando voluntários, universidades, sindicatos, agentes de saúde, organizações populares, pastorais e movimentos sociais com o objetivo de articular ações de combate ao coronavírus nas aldeias. O Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública Geral da União (DPU), e a Fundação Nacional do Índio (Funai) também foram acionados para que atuassem junto aos órgãos do Estado.
Necessidades básicas e informação
Sem espaço adequado para cumprir o isolamento nem acesso à agua potável, alimentos, políticas públicas, equipamento de proteção individual (EPIs) e kits básico para os agentes de saúde atenderem os indígenas, a Rede passou a desenvolver ações para suprir essas necessidades básicas e urgentes. Como a doação de 300 cestas básicas, contemplando cerca de 1.200 famílias Guarani Kaiowá de Dourados, em parceria com movimentos sociais ligados a Via Campesina.
“Rede de Solidariedade tem dado suporte as várias campanhas que os povos têm realizado no Estado”
Outra linha de atuação tem sido a conscientização e informação das comunidades sobre a gravidade do problema e os cuidados necessários. Foram produzidas cartilha, folder em Guarani para que todos pudessem compreender as orientações. Gravações de vídeos com as orientações e um carro de som também contribuem na divulgação.
Por se tratarem de comunidades bastante populosas, foram realizados o treinamento de jovens para ajudar nas visitas, tanto para realizar o cadastro do auxílio emergencial, como para orientar sobre a covid-19. O grupo passou a atuar junto a equipe de saúde que percorre e monitora, diariamente as aldeias e também recebeu formação e instruções de como proceder nos atendimentos. “A juventude da RAJ tem cumprido um papel fundamental nas ações”, avalia o Regional MS.
A formação veio junto com outra ação do Cimi, com o apoio de agências de cooperação nacionais e internacionais, foram doadas 120 caixas d’água para amenizar o problema de saneamento, kits de higiene e estrutura para o bom funcionamento das barreiras sanitárias, adotadas pelos próprios indígenas no início da pandemia para barrar a entrada do vírus nas aldeias.
“O caminho do trabalho para casa abriu a porta para vírus até a Reserva”
A Rede de Solidariedade tem dado suporte as várias campanhas que os povos têm realizado no Estado. Entre elas, o fechamento das igrejas pentecostais das aldeias, identificadas pelas lideranças como fonte de contaminação. A Rede também moveu ações para que os frigoríficos e a usina de cana-de-açúcar fossem notificados e os trabalhadores indígenas tivessem seus direitos trabalhistas garantidos.
Entre memórias e a produção de alimentos
Mesmo com o espaço reduzido, os povos não deixaram de cultivar seus alimentos e trabalham no resgate de suas sementes tradicionais. As hortas e a produção de animais fazem parte da estratégia de diversificar a alimentação da aldeia, já que as cestas básicas têm sido insuficientes.
A liderança Guarani e Kaiowá Lide Lopes, da Comunidade Pyellito Kue, mostra orgulhoso o casal de carneiros que recebeu de doação para iniciar a criação de ovelhas. O galinheiro recém construído também faz parte da proposta de ampliar a criação na aldeia, “essa é a nossa ideia e nossa proposta para ter as criações e alimentação na aldeia, e também passar por esse coronavírus”, reforça ele.
“Nossa ideia e nossa proposta para ter as criações e alimentação na aldeia, e também passar por esse coronavírus”
Da Terra Indígena Laranjeira Nhanderu, Lucine Barbosa, lembra das muitas lutas que seu povo tem enfrentado na beira da estrada, desde 2007. “Estávamos vivendo sem aldeia, na beira da estrada. E o Cimi é quem tem apoiado nós, por que não tínhamos nada para comer na beira da BR 136. Não tínhamos plantação, não tínhamos nada para comer”, recorda Lucine, que é filha do cacique Zezinho Guarani Kaiowá, atropelado e morto em julho de 2012.
Quase 15 anos depois, pouco avançou o processo de demarcação dos territórios dos Guarani Kaiowá, e a pandemia agravou problemas históricos. Porém, ela conta da alegria em ver as crianças aprendendo a plantar, mesmo na pequena área. “Anos atrás a gente não tinha nada, mas aprendi a resistência com meu pai, eu e minha irmã. Se hoje estamos plantando, colhendo mandioca, abóbora, feijão e a horta. Temos os remédios caseiros, naturais lá no mato e os nossos rezadores, isso me deixa feliz”, relata.
O resgate e a multiplicação das sementes tradicionais fazem parte da estratégia da Aty Guasu, reforçada pela atuação do Cimi, e agora durante a pandemia fortalecida pela Rede de Solidariedade. Sementes de vida, de resistência e esperança.
“Anos atrás a gente não tinha nada, mas aprendi a resistência com meu pai”
As ações não podem parar, nem as denúncias
A Rede de Solidariedade tem atuado e mobilizado os parceiros para garantia uma estrutura básica para atendimento nas aldeias. Os pedidos de ajuda não param de chegar e a contribuição das pessoas físicas, organizações e entidades tem sido fundamental para que os povos passem por este momento.
“As comunidades têm passando muita necessidade, falta recursos, nossa área é pequena. Vai entrar mais gente e nós vamos ter que ocupar nosso tekohá. Tô sentindo isso. Nossa comunidade está pedindo para existir nossas aldeias”, conta Lide Lopes.
“As comunidades têm passando muita necessidade. Estamos pedindo para existir nossas aldeias”
A cada quinze dias, o Cimi, Regional MS, tem se reunido com os conselheiros da Aty Guasu para monitorar o avanço da covid-19 e o andamento das ações nas aldeias de todo Cone Sul. Foram criadas formas seguras de dialogar com as aldeias, como o grupo de whatsapp para comunicação diária com os tekohas. Essa experiência de comunicação foi fundamental para a elaboração de um o relatório da violação dos direitos indígenas durante a pandemia, que o Cimi ajudou a organizar, para a Organização das Nações Unidas (ONU).
“Não estamos presentes nas áreas, quando muito necessário vamos até as barreiras dar o apoio, com todas as proteções orientada pelos órgãos de saúde”, assegura o coordenador do Cimi.
Como ocorre em outras regiões e com os mais diversos povos, o apoio emergencial continua e cada doação é bem-vinda. Com o objetivo de fortalecer as redes de solidariedade, o Cimi mantém em seu site um canal para os que desejam contribuir. Saiba, abaixo, como apoiar o Cimi e nossa presença junto aos povos indígenas: