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O Brasil não é a Bolívia, mas está próximo e começa com B

Por Dorgival Vieira.

A pergunta que não quer calar é: até quando as lideranças do campo democrático, popular e de esquerda vão entender que este Governo Bolsonaro, não é mais um dentro da lógica da alternância de poder prevista pela Constituição de 1.988, mas de ruptura com essa mesma Constituição contra a qual conspira, dia sim, outro também?

O que falta ainda para que todos entendamos que Bolsonaro e o bolsonarismo com suas hordas de evangélicos neopentecostais, os seus militares de pijama em posições estratégicas, espantalhos em postos chaves no Planalto, seus milicianos de estimação e tudo o que há de mais atrasado, é, sim, um ensaio “revolucionário para trás”, a serviço do capital financeiro, do baronato dos bancos – um movimento reacionário que não tem nenhum compromisso com as instituições da frágil democracia construída após 21 anos de ditadura?

Ao contrário: se pretendem seus coveiros com suas legiões fascistas sempre prontas a ir às ruas pedir o fim da democracia, o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Não é de continuidade da democracia, mas de ruptura, que se trata.

Que os setores liberais tenham ilusões, é compreensível. Porém, não é aceitável que a esquerda e os setores populares – incluídos aí os partidos do campo democrático-popular, as entidades e centrais sindicais, os movimentos sociais  – se mantenham na vã ilusão de que é só uma questão de tempo para que o bolsonarismo e o seus personagens sinistros desmoronem por sua própria falta de propósito e substância.

Ledo e ivo engano. Nessa batida, no andar da carruagem, é só uma questão de tempo, talvez de meses, para que acordemos numa ditadura sem adjetivos com todo o desfile de horrores e morte que todas elas carregam.

O bolsonarismo é a expressão visível de um movimento reacionário sustentado no que há de mais atrasado e boçal na sociedade brasileira, localizado nos porões da ordem escravagista colonial com a qual o Brasil jamais ajustou contas, que encontrou seu porta-voz em um capitão (neste caso qualquer semelhança com o cabo alemão não é mera coincidência). Veio prá ficar e, ao contrário do que mostram as pesquisas, seu núcleo duro permanece, independente das insanidades e dos valores anti-civilizatórios e obscurantistas que o seu líder propaga.

A lógica dos mais de 350 anos de escravidão negra, a República da Casa Grande construída sob os escombros do escravismo, a ordem do “fala quem pode e obedece quem tem juízo”, excludente e discriminatória para os deserdados da terra – a imensa maioria da população brasileira, pobre e negra – permaneceu intacta por mais de um século, e agora o “diabo saiu da casinha” e está à solta, senhores.

Onde se vê idiotice, sandice, ignorância, há cálculo. É desta forma que vão se criando as condições para o desfecho de um golpe com o fechamento das frágeis instituições da democracia representativa e a ascensão dessa espécie de “fujimorismo” à brasileira – o bolsonarismo – e a transformação do nosso país na mais vistosa e rica colônia americana dos trópicos.

Cada declaração da clã  – imediatamente repercutida nas redes sociais e nas conversas entre seus apoiadores – é um teste. As milícias digitais são só um eco das milícias reais presentes e atuantes no submundo do crime.

Se se repetirem aqui os movimentos que estão ocorrendo no Chile, podemos reeditar o AI-5, ameaça um zero qualquer coisa, no papel de deputado, chanceler informal. Diante da reação esperada, segue-se o pedido de desculpas, igualzinho, quando o mesmo sinistro personagem, calmamente, numa classe disse aos seus alunos num curso preparatório para o ingresso à Polícia Federal que, para fechar o Supremo, bastaria um cabo e um soldado.

Dois dias após libertação do ex-presidente Lula, preso há quase dois anos por conta da farsa judicial arquitetada pelos procuradores da Lava-Jato sob o comando e para benefício do ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, é o próprio Bolsonaro quem ameaça o ex-presidente com Lei de Segurança Nacional, com nos velhos e idos tempos do regime militar. Flagrado mais uma vez, nem se desculpa e a ameaça continua no ar.

Diante de tantas evidências – quase diárias – de que se prepara um golpe com o fechamento das frágeis instituições da democracia, é espantoso constatar que as lideranças da oposição e do campo democrático, se comportam como se estivéssemos na mais completa normalidade e sua agenda se reduza a discussão do calendário eleitoral – no próximo ano e em 2022 -, quando se espera que, pelas urnas, o horror seja mandado de volta ao monturo da história.

Alguém, em sã consciência e desde que não esteja completamente alienado da realidade, pode acreditar que os golpistas já no centro do poder – e tendo o principal deles, no posto de Presidente da República e, portanto, comandante em chefe das Forças Armadas – irá respeitar qualquer resultado saído das urnas que lhe seja desfavorável?

Esperava-se que o principal líder da oposição – o ex-presidente Lula – após quase dois anos encarcerado injustamente, tivesse tido o tempo necessário para amadurecer, aprender com a história e com os erros, inclusive, o mais recente, o de não liderar a formação de uma grande frente de centro-esquerda, com o ex-governador Ciro Gomes, abrindo mão do hegemonismo do PT, a qualquer custo.

Foi precisamente o que fez a ex-presidente Cristina Kirchner, na Argentina. Mesmo liderando a disputa eleitoral, abriu mão, entendendo os atuais ventos que sopram na América Latina. O resultado está aí: os argentinos acabam de dar a resposta, elegendo Alberto Fernández, presidente, com Cristina vice.

Esperava-se da sua principal liderança popular, no momento gravíssimo em que estamos, outra postura: serena, madura, aberta ao diálogo e aos novos desafios. Ao invés do retorno ao primeiro palanque, o recolhimento por alguns dias, uma roda de conversas com as lideranças, inclusive, da direita não bolsonarista, e após, sim, uma coletiva à imprensa nacional e estrangeira para apontar os novos rumos e novos caminhos.

Lula, contudo, retornou da prisão em Curitiba, o mesmíssimo Lula. O primeiro ato, após sua saída, foi falar a apoiadores e fãs na porta do presídio e do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Nada diferente do que fez na greve de 1.979, quando também esteve preso.

A diferença é que estamos em 2.019, e o mundo e o Brasil mudaram. E não foi pouco.

Qualquer um que não tenha perdido a conexão com a realidade, sabe que os desafios de todos os que se colocam no campo democrático popular e de esquerda são imensos. Nosso papel nesta nova conjuntura passa por, em primeiro lugar, sair da perplexidade e dessa espécie de catalepsia  em que todos nos encontramos, paralisados pelo horror produzido diáriamente – e pela primeira vez, no Brasil – por um governo que não esconde sua natureza fascista.

O segundo é nos preparar para impor ao fascismo nas eleições do ano que vem a mais acachapante derrota nas urnas, impedindo que o fenômeno se capilarize e eleja milhares de vereadores e prefeitos pelos rincões do Brasil e até em grandes e médias cidades. Se isso ocorrer, o caminho para a ditadura estará mais uma vez, mais do que legitimado, estará autorizado pelo voto popular.

Para que tais objetivos sejam atingidos, porém, há alguns passos a serem dados e o primeiro é a disposição de nos organizar em cada bairro, em cada rua, em cada favela em comitês, em comissões, em coletivos, em redes, pouco importa o nome que tenham, com o compromisso de defender a democracia contra o fascismo. Trata-se do embrião de organismos de auto-defesa da Democracia e contra o golpe e a ditadura, e em defesa das liberdades democráticas duramente conquistadas e asseguradas pela Constituição que o bolsonarismo pretende ver rasgada.

Pautar-se apenas pelo calendário eleitoral é mais um equívoco que poderá nos custar muito caro. Ainda que as eleições municipais sejam um momento importante para a derrota do bolsonarismo em cada cidade, essa vitória só virá se, desde já, compreendermos que vencer eleições – sob um sistema corrupto e corrompido – só pode ocorrer com a organização do povo.

Sem isso, podemos a qualquer hora acordar com um golpe de Estado – tenha o formato que tiver -, com Lula e todas as demais lideranças grandes e médias, presas e ou exiladas,  com o povo à mercê da sanha dos novos/velhos tiranos, como acaba de acontecer na Bolívia, em que o presidente Evo Morales foi obrigado a deixar o Governo e o país com a cabeça a prêmio a (US$ 50 mil pela sua captura), depois de receber ultimato dos generais de que deveria renunciar.

No caso do Brasil, os generais fiéis ao bolsonarismo não precisarão sequer tomar esse tipo de iniciativa: eles já estão no Governo.

Alguns dirão: mas o Brasil não é a Bolívia. Sim, não é, mas está muito próximo e começa com B.

 

Fonte: AfroPress

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