Texto de Bruno Fracchia.
Foto: Marcos Mesquita.
Em certos períodos históricos, alguns grupos sociais confundiam os atores com bruxos. Para os que assim pensavam, a bruxaria cometida pelos artistas era a incorporação dos personagens (o teatro religioso medieval, expulso da igreja pela presença do Diabo como em é um dos exemplos mais clássicos).
Para o bem e para o mal, este tempo foi superado. Em se tratando de século XXI, época de selfies, internet, sites de “celebridades”, quebra de quarta parede (esta já bem mais que secular), até mesmo confundir ator e personagem é algo impossível. Ainda mais quando se trata desta relação nos palcos e os espectadores são “gente de teatro”, acostumada a analisar, julgar, conceituar, criticar, etc,etc. No entanto, felizmente, esta tal bruxaria artística não morreu; a alquimia de alguns artistas acaba envolvendo até mesmo esta tal “gente de teatro”, que acaba por tudo esquecer, mergulhando de cabeça na aventura teatral, graças ao desempenho de algum bruxo dos palcos.
O “bruxo” que motiva este artigo e esta introdução tem nome: Jarbas Homem de Mello, o intérprete de Don Lockwood, na montagem brasileira do musical Cantando na Chuva, um clássico do cinema mundial e que, neste segundo semestre de 2017, esteve em cartaz em São Paulo, no Teatro Santander.
No apoteótico encerramento do primeiro ato, Jarbas presentifica uma das cenas mais clássicas da história do cinema. A antológica interpretação de Gene Kelly, cantando e dançando na chuva, como num “ato de bruxaria”, deixa de ser história e se torna presente, no Agora, no ao vivo, viva, “dada de presente” a todos os espectadores. Faz-se a alquimia ator-personagem, Jarbas-Kelly! O público presenciando a bruxaria que nos dá a ilusão da volta à vida de Gene Kelly, tamanha a precisão com a qual a cena é apresentada, quando posta lado a lado à imortalizada nas telas dos cinemas. Vemos o grande ator brasileiro, mas também o já falecido ator norte-americano, em uma cena ainda mais potente que a do filme, pois feita ao vivo, sem cortes, sem edição, sem erros. E que ficará para sempre na memória daqueles que assistiram a este desempenho fantástico do ator brasileiro.
Falar na mágica do ator é pseudopoesia, na tentativa de compartilhar todo o encantamento deste espectador. Mas não se pode cair do erro de se permitir que as palavras acima sejam confundidas com desvalorização do trabalho do intérprete. Assim com o bruxo deste texto tem nome, sua magia também tem. Chama-se Treinamento.
É inegável o talento de Jarbas Homem de Mello, mas de nada ele valeria se o artista não se dedicasse há décadas aos treinos de canto, dança e interpretação, com aprofundamento e dedicação intensiva para este trabalho, culminando no desempenho espetacular que é apresentado.
Abdicando de adjetivos e superlativos, recuso a utilização de expressões como “o melhor”, “o maior”, entre outras, já que não escrevo sobre esportes e suas competições. Escrevo sobre arte. Sendo assim, o que posso afirmar é que já há algum tempo quando me pedem para citar algum ator brasileiro, eu digo Jarbas Homem de Mello. E Cantando na Chuva apenas reforçou esta minha convicção.
Importante ressaltar que restringir um espetáculo musical como este a um desempenho é uma injustiça. Teatro é coletivo, com uma obra só funcionando com um time que joga no mesmo nível. E é isso o que ocorre. A peça é também Cláudia Raia, num desprendimento artístico memorável, recusando o lugar de protagonismo feminino, num personagem surpreendente, que confirma o quão a televisão é pequena para dimensionarmos a grandeza do seu talento. O desafio de interpretar uma estrela do cinema mudo que não tinha voz para fala e canto e nenhuma habilidade para dança só poderia ser interpretada por uma artista com total domínio de sua arte, como é o caso de Cláudia Raia.
A peça é também Bruna Guerin, como Kathy Selden (personagem mundialmente conhecida pelo desempenho de Debbye Reynolds), com seu canto belíssimo e afinidade total com Jarbas Homem de Mello. E é também Reiner Tenente, como Cosmo Brown, parceiro de Don Lockwood, e também parceiro à altura de Jarbas, protagonistas de uma das outras cenas de sapateado mais fantásticas deste musical.
E Cantando na Chuva é também um ensemble primoroso, repleto de artistas de alto nível, numa orquestração afinada, plástica, bela. Como temos excelentes artistas no nosso país! É um primor assistir a uma obra como este musical!
A todo o elenco, técnicos e produção desta obra, meu muito obrigado.