Brasil: O que rola agora

Por que as ferrovias do Brasil transportam apenas carga?

Antiga locomotiva a vapor da Estrada de Ferro de Goiás | Foto: Reprodução / MP-GO

 

Por Italo Wolff

 

Segundo geógrafos, o fracasso do Brasil em integrar os trilhos na estratégia de viagem urbana evidencia “um modelo de crescimento capenga”

 

Em todo o mundo, 1,9 bilhão de pessoas deslocam-se diariamente sobre trilhos. As ferrovias são o terceiro modal mais comum de transporte no critério “distância viajada” e, segundo os dados da Universität Mannheim, Alemanha, este meio de locomoção está se tornando cada vez mais comum. As razões para usar os trens são várias e, segundo os pesquisadores do tema, o fracasso do Brasil em integrar os trilhos na estratégia de viagem urbana evidencia “um modelo de crescimento capenga”.

 

Embora o País esteja em 9º lugar na dimensão total da malha ferroviária, o Brasil cai para a posição número 103 quando se considera a área territorial total dividida por quilômetro de ferrovia. Além disso, os trens brasileiros são quase exclusivamente dedicados ao transporte de carga, e não de pessoas.

 

Razões para viajar sobre trilhos

Além da maior eficiência no transporte de cargas, existem motivos convincentes para estimular também a viagem de pessoas sobre os trilhos entre cidades ou dentro do próprio ambiente urbano. Um desses motivos é a saúde pública.

 

Segundo o censo referente a 2019 da Confederação Nacional do Transporte (CNC), foram registrados 67,4 mil acidentes em rodovias federais brasileiras que resultaram em 5,3 mil mortes (o número salta para 46 mil mortes quando se considera acidentes de trânsito em área urbana, a 8ª principal causa de óbitos no Brasil, segundo a Secretaria de Vigilância em Saúde). Comparativamente, apenas 907 pessoas morreram em todo o mundo em função de acidentes nos trilhos no ano de 2019.

 

Outra razão que tem ganhado importância com o debate sobre a sustentabilidade ecológica é a eficiência ambiental comparada entre rodovias e ferrovias. Uma análise dos modos de transporte de 41 países da OCDE publicada no Journal of Transport Literature revelou que o modo ferroviário é mais eficiente ambientalmente do que o modo rodoviário e que se em todo o mundo o tráfego de carga ferroviária fosse transferido para caminhões, a emissão mundial de CO² aumentaria em mais de 2% (48 milhões de toneladas de CO² por ano).

 

  1. Ferrovia Norte-Sul | Foto: Reprodução

O mesmo artigo, publicado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que entre os países europeus, aquele cujo transporte pode ser apontado como mais sustentável é a Letônia. O motivo é seu sistema ferroviário, considerado muito forte, em que cerca de 60% da carga é transportada pelas ferrovias, contribuindo bastante para a redução das emissões de gases poluentes.

 

Histórico brasileiro

A primeira ferrovia completará dois séculos em quatro anos. Primeiro criado na Inglaterra, em 1825, o modo ferroviário veio ao Brasil por iniciativa do Barão de Mauá em 1854, que construiu 14,5 quilômetros de trilhos no Estado do Rio de Janeiro, ligando o Porto de Mauá à Serra de Petrópolis. As linhas passaram por um rápido crescimento entre os anos 1870 e 1900, quando saltaram de 750 quilômetros para mais de 15 mil; e, depois nos anos 1930, quando dobraram de tamanho.

 

Denis Castilho é doutor em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa). Uma de suas linhas de pesquisa consiste na análise e mapeamento da rede ferroviária em Goiás e no Brasil ao longo da história. O pesquisador afirma que o crescimento da malha ferroviária no Brasil está atrelada à produção agrária e mineral.

 

“Foi por meio da ferrovia que a modernização territorial se expandiu por diferentes regiões do país, dando origem a cidades e novas relações sociais de produção”, escreve ele em seu capítulo do livro de ensaios Geografia da Inovação, ainda a ser lançado pela Consequência Editora, e a que o Jornal Opção teve acesso prévio.

 

A cidade de Goiandira é um exemplo de povoamento que surgiu no ponto de encontro dos trilhos do ramal ferroviário que ligava a cidade mineira de Araguari à cidade goiana de Catalão. Com principal função de escoar a produção do interior do País para portos nas regiões litorâneas, locais afastados dos trilhos tinham de transportar a mercadoria até as estações ferroviárias por tropas e boiadas.

 

Construção da Estrada de Ferro madeira-Mamoré | Foto: Acervo Fundação Biblioteca Nacional

 

Segundo o economista e coordenador do Núcleo de Estudos Urbanos, Josef Barat, autor do livro A Evolução dos Transportes no Brasil, diversos fatores levaram ao encolhimento da malha ferroviária após o apogeu na primeira metade do século 20. Alguns dos motivos são: a crise econômica de 1929, que reduziu a demanda pelas exportações de café; a fundação da Petrobrás em 1954, que exerceu papel fundamental na produção de asfalto e combustível; o lobby político da indústria automobilística; a resistência de sindicatos à modernização das tecnologias ferroviárias; a falta de gestão com um plano eficiente de investimento de forma unificada no transporte ferroviário do País.

 

Notadamente, a construção de Brasília representou um marco do rodoviarismo, que trouxe a construção de rodovias radiais por todo o Centro-Oeste e Norte do País. Na década de 1960, a malha ferroviária brasileira começou a encolher, perdendo em média 10 mil quilômetros a cada 20 anos.

 

 

As ferrovias de hoje

Atualmente há expansão de algumas malhas que cruzam Goiás, como a Ferrovia Norte-Sul. Entretanto, Denis Castilho explica que o crescimento é bastante tímido para um país de proporções como as do Brasil. Há apenas duas malhas que perpassam o Estado de Goiás: a Ferrovia Centro-Atlântica (antiga Estrada de Ferro Goyaz) e a Ferrovia Norte-Sul. A principal função dessas ferrovias é o transporte de commodities como grãos e derivados, minérios, combustíveis, produtos siderúrgicos, segundo dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

 

A malha da Ferrovia Centro-Atlântica e suas conexões integram o Porto de Tubarão, no estado do Espírito Santo. Mas no caso de Goiás, a principal conexão da malha é com o porto de Santos, onde a companhia VLI Logística opera o Terminal Integrador Portuário Luiz Antonio Mesquita. A Ferrovia Norte-Sul se conecta à Ferrovia Carajás no Norte do país. Essa última dá acesso ao Porto de Itaqui, no estado do Maranhão.

 

História pessoal

Denis Castilho compartilha duas histórias que ajudaram a moldar sua compreensão sobre as Ferrovias no Brasil. A primeira se passa durante a quinta edição do evento “Brasil Nos Trilhos”, que foi organizado em um hotel de Brasília pela Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) em 2017. Neste encontro estavam os proprietários das principais ferrovias do Brasil.

 

“O que ficou claro nesse evento é que esse setor corporativo se apropria dos trilhos para uma função específica: exportação de commodities”, explica Denis Castilho. “Todas as ferrovias estão subordinadas à área logística de mineradoras como a Vale (principal acionista da empresa VLI) e de exportadoras de produtos agrícolas como o Grupo Cosan (que possui a operadora de logística Rumo)”.

 

Denis Castilho explica que, nesse ambiente onde decisões importantes sobre as direções do desenvolvimento das Ferrovias são tomadas, o transporte de pessoas não é cogitado. Temas como integração urbana e outras discussões populares na Europa e no mundo também não são discutidos.

 

O segundo episódio de insight do pesquisador veio em um evento do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), em que o próprio Denis Castilho era um palestrante sobre o tema Integração Regional:

 

“Comecei minha exposição citando a experiência que tive em Portugal. Conheci a região do Douro via trem, além de ter ido de Lisboa à Porto por trilhos também. Eu disse que fiquei impressionado com ciclistas que pedalam até a ferrovia, deixam suas bicicletas em um compartimento apropriado dentro do vagão e, ao chegar no destino, vão caminhando ao trabalho em outra cidade. Ao mencionar isso no Crea, percebi que esse tipo de discussão é inimaginável no Brasil. Urbanistas, arquitetos e engenheiros nem cogitam o transporte por trilhos no cotidiano.”

 

Entrevista / Denis Castilho

O verbo queima, a palavra sangra | Jornal UFG

Denis Castilho: “Das estações cheias de vida e de trocas, hoje temos poucos pátios que atendem grupos e demandas muito específicas. Com isso, pode haver crescimento para alguns, mas não desenvolvimento ao país e ao conjunto da sociedade. ” | Foto: Reprodução / UFG

A logística no país poderia se beneficiar de maior malha ferroviária? Como?

 

Sem dúvida. Um país não se desenvolve sem a multimodalidade. O Brasil é muito dependente do transporte rodoviário, o que gera desequilíbrio e uma dependência onerosa (até mesmo irracional) no sistema de circulação. Se observarmos o que acontece em países da Europa, nos Estados Unidos e especialmente na China, o desenvolvimento econômico em suas diversas escalas passa também pelos trilhos – o que vale não apenas na escala das exportações, mas também para as demandas internas e regionais. Ao contrário do que muitos insistem dizer, o transporte por trilhos é mais seguro, possui custo final menos oneroso para diversos produtos e ainda diversifica e amplia as operações logísticas.

 

Como acontece esse desenvolvimento?

Principalmente se investindo em corredores estratégicos (até porque as exportações realmente representam uma demanda importante do país), mas também em sistemas regionais de interligação para atender demandas internas de produção e circulação. Isso também vale para as áreas metropolitanas e adjacências. A eficiência dos trilhos na mobilidade intraurbana e inter-regional é inquestionável. Representa eficiência, integração, desenvolvimento e se constitui como um dos instrumentos para dirimir problemas de mobilidade em áreas densamente urbanizadas.

 

Quais os maiores desafios para esse aumento da malha?

No Brasil, em especial, há dois paradigmas que precisam ser superados. O primeiro diz respeito à dependência ao rodoviarismo. Uma complexa cadeia produtiva e logística se voltam tanto a esse paradigma a ponto de tornar a economia do país capenga. Além da deseconomia que essa dependência gera, e isso foi evidenciado na greve de caminhoneiros iniciada em maio de 2018, a forma como as rodovias estão organizadas e apropriadas ainda traz desafios importantes a uma integração que atenda, de fato, a circulação e a mobilidade tão necessárias ao desenvolvimento do país.

 

Mas há outro paradigma que precisa ser superado. Trata-se de uma ideia muito proeminente no país de que ferrovias servem apenas para o transporte de commodities ou para atender as demandas de exportações. Por trás desse paradigma, há uma forte articulação de grupos corporativos que torna o sistema ferroviário nacional bastante seletivo.

 

Das estações cheias de vida e de trocas, hoje temos poucos pátios que atendem grupos e demandas muito específicas. Com isso, pode haver crescimento para alguns, mas não desenvolvimento ao país e ao conjunto da sociedade.

 

É possível haver desenvolvimento sem repensar a logística?

Se o País quer pautar um desenvolvimento sério e mais distribuído, tem que investir em eixos estratégicos, mas também em uma escala de caminhos (seja rodovias, estradas ou trilhos) bem distribuída. Nossas vicinais, por exemplo, são de péssima qualidade. O produtor rural, por exemplo, para acessar os mercados, conta com vicinais e rodovias que lhe oneram muito. Isso gera prejuízo a alguns e exclusão a outros. Há milhares de produtores impedidos de desenvolver uma determinada atividade econômica justamente por conta das condições de nossas vicinais. Com o transporte caro (e agora será ainda mais inflacionado com alta dos combustíveis), como vamos discutir desenvolvimento local, regional e nacional?

Fonte: Jornal Opção

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