Por Geraldo Varjabedian.
Há uma década e pouco tive a oportunidade de repensar minha vida. Abalroado por uma depressão severa, não apenas perdi grana, mas afetos, segurança, confiança e, principalmente, certezas. Muitas certezas.
Tive uma fase desesperadoramente mística. Mais desesperadora que devota. E acreditei no que me pareceu tábua boa pra me agarrar. Aliás, este foi um aprendizado importante. Entender que é possível superar padrões de crenças, misticismos e alienações religiosas, sem, por isso, perder a espiritualidade ao fim do desespero. Porque, sim, as pessoas se agarram mesmo enquanto têm certeza de que precisam de algo vindo de fora. Quando compreendem o que vem a ser “espiritualidade”, deixam de ser reféns de doutrinas, verdades prontas, vaticínios, terraplanismos, e mergulham em si. Porque, sim, espiritualidade é interiorização.
E por que falo em espiritualidade?
Porque muitos dizem que o que passei, o que aprendi, são lições do além, que foram provações, como se alguém com uma prancheta estivesse anotando meus feitos, obstáculos superados ou desistências. Como se esse “evoluir” fosse gerenciado por qualquer um, para além da existência.
Aprendi pra caralho! Muito!
Mas o principal ensinamento que “a vida” me deu, foi a clareza de que ninguém entende po##@ nenhuma, enquanto não se dispõe a questionar suas crenças, a ponto de desaprendê-las, de compreender até onde fazem sentido.
Quem não é capaz de desaprender, não tem o que ensinar!
Não é arrogância, não. Aprendi pra caralho! Porque desaprendi grande parte das carochinhas que me faziam “homem”, que me faziam “filho”, que me faziam “marido”, “pai”… Sobreviver, para mim, foi proporcional à perda de sentido desses papéis. E, sem papo coach, o primeiro papel que queimei foi a crença de que eu era o cara grandão que me ensinaram a ser. O corajoso. O heróico. O genial. O cara que encara qualquer coisa, sem piar. O que faz o que tem que ser feito. O tolo de ouro que eu era, enquanto honrava os papéis impostos em busca da groselha aguada das aceitações.
E antes de qualquer urro em contrário, preservo a tônica de alguns desses papéis, sim. Mas a tônica, não a estrutura, não o exercício. A gente aprende a se observar, e nunca mais aceita que olhares de fora determinem.
Entre outras ironias, o processo depressivo me apresentou a fome, a miséria completa, a quebra em caquinhos do orgulho. Aprendi a pedir. Aprendi a não ter, não saber, não controlar. Não contar com certezas, porque certezas não põe comida no prato. Foi como aprendi o valor do alimento. Porque nunca havia atinado para a fome como possibilidade – que embaralhasse os meus sentidos. Sabia pelo desalento alheio. É diferente.
Do mesmo modo, aprendi o idioma da solitude. Foi a meditação, minha fiel companheira, que me deu a linguagem necessária para me dizer: está tudo bem! Você não apenas pode viver sem ninguém, como deve lutar por sua inteireza – inclusive, para nunca mais ser refém afetivo, para nunca mais confundir sua noção ampla de entrega com quirera alguma!
Estar só, em plena Pandemia, não muda minha vida, em quase nada. Ficar em casa? Só eu sei quanto tempo passei em casa, meditando ou em desespero, não importa. Por mais saudades que sinta de minhas filhas, mãe, amigos… Quem segura minha barra, aqui dentro, sou eu. Quem não deixa eu me desesperar sou eu. Quem aprendeu a encontrar alimento pelas ruas, na mata fui eu. Quem me dá alimento sou eu! Quem sabe onde dói – sou eu…
E não tem papo ego. Porque ego não é de todo ruim, nem de todo bom. É a regulagem que você faz. Se você se deixar levar pelas regulagens de ego fora de você, pode esperar por chantagem e dor. É o ego que nos salva quando estamos à míngua da humanidade alheia. É o ego que sustenta a diplomacia entre nossas essências e as relações com o lado de fora. Largue mão de falar mal do ego alheio porque o mal, como na cachaça, não está no ego, mas no uso que fazemos dele.
Então,tá. Estamos a sós. Alguns, sem a sorte de estarem completamente a sós. Outros, com a sorte de não estarem completamente a sós. Porque não suportariam.
E este é o grande barato quando você se aceita. Não é mais uma questão de tolerar ficar sozinho. É um prazer imenso, porque as pauladas ensinam a gente a ser amoroso consigo mesmo. Isso foi outro aprendizado foda. A gente só consegue se responsabilizar afetivamente por alguém, quando aprende a ser responsável por si. Responsável, amplo sentido, para muito além do raso dos boletos.
Observo a reação das pessoas ao isolamento social. A existência de alguns parece destruída pela falta do entretenimento do trabalho, da correria, corroída pela falta de uma simples pizza. Outros anunciam o próprio desespero, logo na primeira semana. Outros evocam o espírito tirano da moral do trabalho e decretam a morte do outro… As pessoas, infelizmente, não lidam bem consigo mesmas. Não lidam bem com a falta de atividades. Entram em abstinência de alienação, ao menor sinal de olharem para si mesmas.
A serenidade não faz parte do cardápio da máquina de moer gente – o mercado. Quando o moedor para, ao invés de sorverem o tempo livre, a serenidade de nada fazer, a suspensão da agenda, as pessoas se incomodam – e como reclamam – por que não foram moídas hoje…
Tem gente que não pode parar para não pensar, para não sentir, para não lembrar que é gente! Taí o exemplo do pessoal da construção civil – entre outros, um segmento de alto impacto social e ambiental em que pessoas deveriam experimentar a serenidade, a interiorização, o autoconhecimento – a todo vapor. Mal sabem como o mundo melhoraria, caso entrassem em contato com sua verdade interior!
Uma semana de confinamento, e estou recebendo pedidos de socorro. Gente jurando que não vai aguentar. E não é porque falta comida ou grana. É porque não dão conta de si mesmos…Mal sabem que tanta gente vive anos, décadas, completamente isolada do mundo, pelo próprio trabalho, por doença, por perda de sentido…
Não sou otimista quanto ao mercado. Nem quanto às pessoas. O motor dessa porcaria desenvolvimentista é a inquietação permanente, o desassossego, a insatisfação. E, incapazes que são de desaprender, as pessoas logo acatarão as ordens do mercado e voltarão ao trabalho, subservientes, reféns, dependentes como antes de suas carreiras diárias de inquietude, ainda que sob o amortecimento desses dias em casa, para a maioria, mais uma oportunidade perdida de entender suas inquietações, olhar para si mesmas, despertar para o essencial, perceber a negação do óbvio que domina suas rotinas, escolher seu lado e lutar!