Por: Luis Felipe Miguel
Publicado orginalmente: Esquerda Online
Um dos desdobramentos bizarros do identitarismo – e aqui me refiro, obviamente, não às lutas emancipatórias de tantos grupos oprimidos, mas à deriva autoritária que faz da imposição da censura à fala alheia o alfa e o ômega da luta política – é a relação que se estabelece entre representação e realidade.
É como se a representação criasse a realidade. Logo, basta parar de representar uma coisa para ela parar de existir.
Um platonismo mambembe e radicalizado, seria possível dizer.
Isto surge na preocupação obsessiva com “espaços seguros”, com “gatilhos” e coisas do gênero. Em suma: tudo o que me afeta deve sumir do meu campo de percepção.
E assim, imagina-se, a maldade do mundo desaparecerá.
Não se trata apenas de que “Com açúcar, com afeto” é um dos pontos altos da obra de Chico Buarque de Hollanda – uma obra que, por sua vez, é um dos pontos altos da música popular brasileira.
Entenda a polêmica:
É que, ao representar um determinado tipo de relação afetiva, ao dar voz a ela, a música também põe em cena alguns dos mecanismos que fazem com que, numa sociedade marcada pela dominação patriarcal, o amor se expresse como submissão e conformismo.
Sem desdenhar, diminuir ou infantilizar a voz da dona de casa, a canção exibe constrangimentos que atuam sobre ela – e faz pensar.
Representação não é endosso, não é absolvição, não é nem naturalização. É um recorte parcial da realidade a partir de um determinado ponto de vista.
Não vou discutir a complexidade da letra, a sutileza com que constrói suas personagens (a que fala e o que é falado), nem lembrar que há uma diferença entre Chico Buarque, o compositor, e seu eu lírico.
Ou o veto vinculado à compreensão rasa do “lugar de fala” se aplica aqui também, anulando a própria ideia de eu lírico? Então, de Chico, poderíamos reter apenas aquilo que versa sobre jovens cariocas de classe média filhos de intelectuais renomados, não?
Ainda que “Com açúcar, com afeto” seja uma canção de enorme sofisticação e sensibilidade, não é preciso ser um gênio para entendê-la. Na verdade, basta não ser muito burro.
Sem a abertura para este jogo, que é próprio da representação narrativa e que Chico faz magistralmente em tantas letras, vamos exigir panfletos no lugar de obras artísticas.
Muito além dos sonhos mais delirantes do zhdanovismo. Em vez do “realismo socialista”, o “irrealismo identitarista”.
E se vamos querer que só se apresentem personagens emancipadas, envolvidas em relações igualitárias, sadias e não violentas, vai sobrar pouca coisa. Crime e castigo tem um assassinato, coisa muito feia, não é mesmo? Deus e o diabo na terra do sol fala de miséria. Rei Lear, de sangrentos conflitos familiares. La traviata, de machismo. Morte e vida severina, da exploração dos trabalhadores. Guernica retrata a guerra. Vamos proibir todas estas obras e assim, imagina-se, acabar de vez com todos estes flagelos.
Pelo menos no nosso mundo mental, que, parece, é o único que importa.
Em nome da coerência, estas pessoas deviam limitar sua dieta cultural aos desenhos dos ursinhos carinhosos.