Quem é que de vez em quando não acorda meio “deprê”? O inexorável caminho da vida para a não existência é talvez um dos maiores desafios do nosso intelecto. Muita gente busca uma saída espiritual para dar esperança e assim amenizar o patético fim que a todos nos espera. Eu me pergunto, se devotar tanto tempo e energia preocupando-se com o nosso fim, não seria melhor se fosse aplicado ao presente, ao aqui e agora, construindo uma existência buscando não só a nossa perfeição de caráter mas também realizar nossos sonhos sejam quais forem.
Sei que não devemos lamentar as más decisões do passado mas quando percebemos que já temos menos tempo para viver do que o que já vivemos e que de agora em diante a vida se tornou uma corrida contra o tempo, não há como, às vezes, não acordar de manhã depressivo.
A coisa fica mais séria quando percebemos que a humanidade está involuindo e perdendo justamente sua humanidade. Buscar uma luz no final do túnel passa a ser um exercício fútil.
John Lennon já tinha percebido isto à muito tempo quando disse “o sonho acabou”. Sua música chamada God (Deus) foi um golpe duro, mas realista, nos sonhos de muitos de seus fãs que até hoje vivem como zumbis tateando e buscando os Beatles com a mesma intensidade daqueles religiosos que, em vão, tentam ganhar o direito de voltar para o Paraíso:
DEUS
Por John Lennon
Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor
Vou repetir
Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor, sim
Dor sim
Não acredito em magia
Eu não acredito no I-Ching
Eu não acredito na bíblia
Eu não acredito em tarot
Eu não acredito em hitler
Eu não acredito em jesus
Eu não acredito em kennedy
Eu não acredito em buda
Eu não acredito em mantra
Não acredito no gita
Eu não acredito em ioga
Eu não acredito em reis
Eu não acredito em elvis
Eu não acredito em Zimmerman (Bob Dylan)
Eu não acredito em Beatles
Eu só acredito em mim
Yoko e eu
E essa é a realidade
O sonho acabou
O que posso dizer?
O sonho acabou
Ontem fui o tecelão dos sonhos, mas agora renasci
Fui o Walrus, mas agora sou John
E então, queridos amigos, vocês só precisam continuar
O sonho acabou
Nota: Resumindo John não perde mais tempo acreditando em contos de fadas e promessas vazias ele, declara que a partir de então passa a acreditar somente no aqui e agora!
Uma geração depois do poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, Walt Whitman considerado por muitos como o “pai do verso livre” se declarar “um poeta do corpo da alma”, animado por uma consciência elétrica de como os dois são interdependentes, de como o corpo é o espaço ocupado pelo “eu real”, o psicólogo pioneiro e filósofo William James revolucionou nossa compreensão da vida com sua teoria de como nossos corpos afetam nossos sentimentos e através do séculos, os cientistas começaram a descobrir o que os poetas sempre souberam – que o espírito é tecido por “tendões” e a mente por “tutano”. O corpo é o lugar, o único lugar onde vivemos – é onde vivenciamos o tempo, é onde nos curamos de traumas emocionais, é a sede da consciência, sem a qual não há nada. E, infelizmente, com a distração, com o vício e com o transe da ocupação, ainda passamos nossas vidas nos afastando desse fato elementar. Isto acontece até que, de repente, algo além do nosso controle, um diagnóstico, um desgosto, uma pandemia, nos faz acordar cambaleantes e então lembrarmos do nosso corpo, essa arena única e solitária do ser. No instante em que nos lembramos de reverenciá-lo, também nos lembramos de lamentá-lo, pois nos lembramos de que esse milagre vivo é um milagre temporário, uma constelação de átomos apenas emprestados e destinados a retornar à mesma poeira estelar que o criou.
Então, isso é o que a poetisa Louise Glück, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2020, explora no curto e impressionante poema “Crossroads” (Encruzilhada), publicado originalmente no seu livro A Village Life (O Vilarejo Vida) publicado em 2009, e que posteriormente foi incluído na sua coleção indispensável simplesmente chamada “Poemas 1962-2012″, e lida pela própria poetisa para o Prêmio Griffin de Poesia em 2010.
ENCRUZILHADA
por Louise Glück
Meu corpo, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo
começo a sentir uma nova ternura por você, muito crua e desconhecida,
como o que me lembro do amor quando era jovem
Amor que tantas vezes era tolo em seus objetivos
mas nunca em suas escolhas, suas intensidades
Muito amor exigido com antecedência, muito amor que não poderia ser prometido
Minha alma tem estado tão assustada, tão violenta;
perdoe a sua brutalidade.
Como se fosse esta alma, minha mão se move sobre você com cautela,
Não querendo ofender
mas, finalmente, estou ansiosa, por alcançar a sua expressão como substância:
não é da terra que vou sentir falta,
é de você que vou sentir falta.
Complemento ESTE POEMA com o surpreendente “Antídotos do Medo da Morte”, da astrônoma e poetisa Rebecca Elson, composto enquanto seu próprio corpo se projetava sobre o horizonte intempestivo do não-ser:
ANTÍDOTOS AO MEDO DA MORTE
por Rebecca Elson
Às vezes como um antídoto
Com medo da morte,
Eu como as estrelas.
Nestas noites, deitada de costas,
Eu as chupo da escuridão que apaga
Até que estejam todas, todas dentro de mim,
Pimenta quente e picante.
Às vezes, em vez disso, eu me mexo
em um universo ainda jovem,
Ainda quente como sangue:
Sem espaço sideral, apenas espaço,
A luz de todas as estrelas ainda estão
à deriva como uma névoa brilhante,
E todos nós e tudo
Ja ai (misturados)
Mas, sem restrições de forma.
E às vezes é o suficiente
para deitar aqui na terra
ao lado de nossos longos ossos ancestrais:
Para caminhar pelos campos de paralelepípedos
de nossos crânios descartados,
Cada um como um tesouro, como uma crisálida,
Pensando: o que sobrou dessas cascas
voou com asas brilhantes.
…gostou? Então, conheça o poema “Imortalidade” onde a poetisa Lisel Mueller, que viveu até os 96 anos, discute “sobre o que dá sentido às nossas vidas efêmeras”
IMORTALIDADE
por Lisel Mueller
No castelo da Bela Adormecida
o relógio bate cem anos e a garota na torre retorna ao mundo.
Assim como os criados na cozinha,
que nem esfregam os olhos.
A mão direita do cozinheiro, levantada
um século atrás, completa seu arco descendente para a orelha esquerda do ajudante de cozinha; as cordas vocais tensas do meninofinalmente deixam sair o choramingo preso e duradouro,
e a mosca, presa no meio do mergulho
acima da torta de morango, cumpre sua missão permanente e mergulha no doce esmalte vermelho.
Quando criança eu tinha um livro
com uma foto dessa cena.
Eu era muito jovem para notar
como o medo persiste, e como
a raiva que causa o medo persiste,
que sua trajetória não pode ser alterada ou quebrada, apenas interrompida.
Minha atenção estava no movimento;
daquele corpo leve que com suas asas transparentes e vida útil de apenas um dia humano, um século depois, ainda ansiava por sua parte particular daquele doce.
…Há não deixem de ler este poema sutil e poderoso chamado A Mosca do grande mestre William Blake:
A Mosca
por William Blake
Pequena mosca,
Brincando no seu verão
Que minha mão sem pensar
Espantou para longe
Não sou eu
Uma mosca como você?
Ou não és tu
Um homem como eu?
É que danço
Bebo e canto,
Até que alguma mão cega
Corte minhas asas.
Se pensamento é vida
Força e respiração,
O querer
Do pensamento é a morte,
Então eu sou
Uma mosca feliz,
Não importa, se eu viver,
Ou se eu morrer.
Bom, depois destas belas e profundas poesias gostaria de deixar aqui as palavras do físico Brian Greene sobre a mortalidade e nossa busca por significado.
“A morte é nossa amiga precisamente porque nos leva à presença absoluta e apaixonada de tudo o que está aqui, o que é natural, o que é amor”, escreveu Rainer Maria Rilke em carta a sua amiga aflita, a condessa Margot Sizzo-Noris-Crouy, em 1923 – ano em que publicou, após uma década de trabalho, as suas milagrosas Duino Elegies.
Quase um século após a morte de Rilke, o físico teórico e matemático Brian Greene – que está lendo e refletindo sobre a nona das dez elegias de Rilke sobre o Universo feita em Verso – trouxe a poética da ciência para esta perspectiva de expansão da vida sobre a mortalidade em seu igualmente livro milagroso chamado “Until the End of Time: Mind, Matter, and Our Search for Meaning in an Evolving Universe” (Até o Fim dos Tempos: mente, matéria e nossa busca por significado em um universo em evolução), que ele lançou como resultado de um diálogo com seu colega da Universidade de Columbia, o diretor de ciências da “Pioneer Works” (Trabalhos Pioneiros) e a poetista Janna Levin.
Neste fragmento de sua conversa totalmente reveladora, Greene faz uma ponte entre Shakespeare e a ciência para considerar como enfrentar o fato elementar de nossa finitude – enfrentá-lo com a coragem que só vem da lucidez, da “presença absoluta e apaixonada com tudo o que está aqui” – dilata nossa experiência subjetiva de tempo e amplia nosso ser, de modo que, embora não possamos viver mais do que vivemos, possamos viver mais o agora:
Em outra parte da conversa, e ao longo de seu excelente livro, Greene ecoa o sentimento no coração da icônica “Ode A Uma Flor” do lendário cientista e Prêmio Nobel Richard Feynman (Barbieri: do qual sou grande fã), insistindo que um conhecimento do que somos feitos, um conhecimento das leis fundamentais – as leis que governam os átomos que formam as moléculas que formam as células que formam os seres conscientes e auto-reflexivos que examinam essas leis na conversação e na contemplação – nos ajuda a contar uma história mais completa de quem e o que somos. “Quando você vê todas essas histórias aninhadas em um arco narrativo”, diz ele, “dá uma compreensão mais profunda de onde viemos e o que está acontecendo no momento e, finalmente, para onde estamos indo.”
Ele apresenta um argumento elegante para essa necessidade de auto-coesão em outro fragmento da conversa:
“Quando você reconhece que somos o produto das leis da física, sem propósito e sem sentido, atuando em nossas partículas – porque somos, todos, sacos de partículas – muda a maneira como você busca por significado e propósito: Você reconhece que olhar para o cosmos para encontrar uma resposta que está flutuando lá no vazio será apenas olhar na direção errada. No final do dia, temos que fabricar nosso próprio significado, nosso próprio propósito. Para dar sentido à nossa existência temos que fabricar coerência… E quando você fabrica um propósito, isso não o torna artificial, isso o torna muito mais nobre do que aceitar o propósito que lhe é imposto pelo mundo exterior, pela sociedade.”
Aqui me despeço com o meu principal “leitmotif” de vida, uma frase de autoria do filósofo e matemático francês René Descartes que diz “Cogito Ergo Sum” (Penso, logo existo).
Nota: Um “leitmotif” ou “leitmotiv” é uma frase musical curta e constantemente recorrente associada a uma pessoa, lugar ou ideia em particular.
Tenham um bom dia! 🙂