Colunistas Geraldo Varjabedian

Motim a bordo!

Por Geraldo Varjabedian (colunista no Baixada de Fato):
Voltava de Santos para Bertioga. Exausto, vinha pela Rua Sete de Setembro, olhando aquela poesia miserável dos entornos do Mercado Municipal de Santos.

Passos de quem já queria estar em casa, observava os estragos do vendaval. Telha voada. Caixotes caídos pela rua. Cobertor de mendigo atravessado no meio-fio. Galhos. Jornais. Fios elétricos rompidos…E o cheiro. Um cheiro muito forte de esgoto, mesclado aos odores do porto que a gente nem sente mais de tão ruins…

Muita gente sobre o pier das catraias. Os barcos, amarrados uns aos outros, balançavam fortemente enquanto o vento ondulava a água suja e pulverizava os jatos da propulsão a cada acelerada, enojando a todos a bordo. Sentado no banco molhado da chata, tentava alívio nas cores extraordinárias daquele entardecer…

O barqueiro não estava pra conversa. Molhado, certamente, do toró que acabara de cair, foi o que pensei… Parecia não estar ali. Olhava para o nada e acelerava, acelerava, acelerava, arremetendo a chata contra o pier até que lotasse.

Depois da manobra contra o vento, seguimos pelo canal sob o porto. O vento passava por cima do túnel atravessado por pontes e trechos de lajes.

Chegava uma chata lotada de Vicente de Carvalho. Ao passar por nós, os passageiros berravam, encharcados, descompensados: – Não vai! Não vai! Vocês vão morrer!Tá virado! Tá virado!

Uma passageira ao meu lado começou a gritar. Meteu as unhas em meu braço e começou a repetir, sem trégua – Perdão, Senhor jesus! Perdão, Senhor Jesus! Perdão, Senhor jesus! Perdão, Senhor Jesus! Perdão, Senhor Jesus!…

Avistei a boca de saída do túnel contornando o perfil dos passageiros à minha frente… O canal do porto estava em pleno transtorno. Vagas altas, muito cinzas e espirradas pelo vendaval explicavam o estado lastimável dos que vieram na embarcação que passou por nós. Era como se as águas repetissem o pânico: – Não vai! Não vai!

As pessoas começaram a avisar os seus pelos celulares. A chata avançava em direção à travessia.

Um passageiro abriu a caixa dos salva-vidas e praticamente ordenou: – Ocês têm que vestir isso aqui! E mostrava o colete como quem lê uma profecia.

O motim começou a bordo. – Ô! Ô!… Chamando o barqueiro, uma senhora disparou lá da proa – O senhor não vai cruzar o canal!… O rapaz ao meu lado: – Bando de cuzão, é só vento!… Eu, sentindo o morno e o molhado das lágrimas de minha vizinha de bordo, olhei nos olhos do barqueiro e soltei: – Se não está seguro, amigo, pare. Vamos esperar!… Mais três pessoas protestaram que queriam ir, que tinham horário. Que era bobagem esperar… Os demais, sem exceção, implorando para voltar ao pier, já se atropelavam em direção à caixa de coletes salva-vidas…A chata encostou numa das paredes do túnel, um passageiro tentou se agarrar às ferragens de uma escada cravada na parede para subir ao porto e lá ficou pendurado, no recuo do barco, até que o barqueiro voltasse…

Não queria estar na pele daquele barqueiro. Aliás, não queria estar na pele de ninguém dentro daquele barco.

De repente, entra uma chata vazia no túnel. Ninguém a viu chegando no meio das ondas, mas o olhar do homem ao leme disse tudo que precisava ser dito. Sem uma palavra, encharcado, digno de um instantâneo P&B, aquele rosto – e seus olhos que não piscavam – trouxe a decisão.

A proa de nossa chata já subia em direção à laje, quase saindo do túnel, quando o barqueiro conseguiu reverter a marcha e, muito lentamente, começou a eternidade daquela volta ao mercado, à ré e muito devagar. Um cheiro insuportável de lodo saindo da água, barqueiro lutando com o leme contra a força do vento, batendo em uma parede, voltando ao centro do canal, batendo do outro lado…

Empurrados pelo chumbo do silêncio de todos que estavam a bordo, chegamos. A chata bateu no flutuante de ferro e desembarquei.

Do alto da rampa, um encarregado gritava, nitidamente assustado:- Já tinha mandado parar! Já tinha mandado! Aqui parou! Só pelo Valongo! Atravessa pelo Valongo! Aqui tá perigoso!

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