Os dez cientistas da Fiocruz cassados e perseguidos pela ditadura militar no Massacre de Manguinhos: da esquerda para a direita, Augusto Cid Mello Perissé, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Haity Moussatché, Fernando Braga Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes, Massao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira e Domingos Arthur Machado Filho.
O Massacre de Manguinhos foi um dos mais infames episódios de perseguição política contra cientistas ocorridos durante a ditadura. O episódio ocorreu no contexto de recrudescimento do autoritarismo e da repressão que caracterizou os “anos de chumbo”, logo após a emissão dos Atos Institucionais nº. 5 (AI-5) e nº. 10 (AI-10), quando a perseguição política se tornou generalizada, extrapolando o âmbito da oposição de movimentos organizados e passando a atingir cidadãos comuns que fossem meramente suspeitos de não compactuar com as ideias do regime.
Manguinhos é o nome do bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro onde se localiza a sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – à época denominada “Instituto Oswaldo Cruz” (ou IOC). No dia 1º de abril de 1970, os dez cientistas supracitados, todos ativos na Fiocruz há mais de duas ou três décadas, tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos por determinação do regime militar. Dois dias depois, a ditadura emitiu novo decreto determinando a aposentadoria compulsória dos cientistas. Outra norma do governo proibia o grupo de prestar serviços ou trabalhar para qualquer repartição pública ou qualquer empresa subvencionada com dinheiro do erário. Com isso, a Fiocruz perdeu 14% do seu quadro de pesquisadores e foi obrigada a encerrar diversas linhas de pesquisa inovadoras sobre novos medicamentos e tratamentos para doenças infecciosas e surtos epidêmicos.
O grupo dos dez cientistas, todos ligados à área de medicina experimental e combate a doenças tropicais, era monitorado pelos militares desde a década de 1940. Isso porque em 1946, os cientistas subscreveram um documento de apoio às demandas do senador Luís Carlos Prestes, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que exigia a retirada das tropas estadunidenses do Nordeste brasileiro e o encerramento da base militar dos Estados Unidos, montada em Natal durante a Segunda Guerra Mundial.
Nas décadas seguintes, esse mesmo grupo de cientistas passou a defender o desenvolvimento autônomo da pesquisa científica no Brasil. Após o golpe de 1964 e a instalação do regime militar, os cientistas criticaram a submissão das instituições públicas aos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos e ao projeto ideológico anticomunista. A gota d’água ocorreu quando alguns cientistas do grupo denunciaram um desvio de verba que deveria ser destinada ao combate da malária, da peste bubônica e da meningite.
A perseguição ao grupo contou com apoio do próprio diretor-interventor da Fiocruz, Francisco de Paula Rocha Lagoa, indicado para o cargo pelo marechal Castelo Branco. Rocha Lagoa, que futuramente assumiria o cargo de Ministro da Saúde no governo Médici, era profundamente reacionário e anticomunista e tratou de isolar, perseguir e boicotar os trabalhos realizados pelos cientistas em pauta desde que assumira o comando da instituição. Entre seus primeiros atos estava o fim do financiamento para as pesquisas do grupo, ocasionando a inviabilização dos trabalhos.
Logo após o desligamento dos profissionais, Rocha Lagoa abriu inquéritos policiais nas áreas civil, militar e administrativa contra os dez cientistas, acusando-os de conspiração contra a administração pública e desenvolvimento interno de uma célula comunista. As acusações beiravam o ridículo e chegavam a incluir questionamentos sobre “promoção de feijoadas e vatapás subversivos nas dependências da instituição”. Apesar disso, um dos pesquisadores, Fernando Ubatuba, chegou a ficar preso por 14 dias num paiol de pólvora do Exército Brasileiro em Paracambi. Nenhum dos inquéritos conseguiu provar nada contra os pesquisadores.
Não satisfeito com a perseguição ao grupo, o governo federal mirou no desmonte e sucateamento da própria Fiocruz, diminuindo de forma agressiva o orçamento da instituição, forçando-a a diminuir sua produção de insumos, soros e vacinas, a encerrar linhas de pesquisa e a fechar parte substancial de seus laboratórios. A ditadura ordenou o encerramento do Instituto Nacional de Produção de Medicamentos e fundiu a Fiocruz a diversas outras instituições, intencionando fragilizar sua capacidade de articulação política e dificultar quaisquer projetos de autonomia gerencial. As ações do regime prejudicaram as campanhas nacionais de vacinação, a fabricação de medicamentos e o combate aos surtos epidêmicos por vários anos, além de desarticular e descontinuar décadas de pesquisa em saúde pública, causando enormes retrocessos à ciência brasileira.
Somente em 1986, cinco anos após a sanção da Lei da Anistia e já no período da redemocratização, os dez cientistas foram reintegrados à Fiocruz. Apenas o parasitologista Herman Lent não aceitou retornar para a instituição, preferindo continuar dando aulas na Universidade Santa Úrsula, onde conseguira emprego em 1976.
A cerimônia de reintegração ocorreu em 15 de agosto de 1986, com presença do ator Mário Lago, então presidente da Comissão Nacional de Anistia, do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados, e do antropólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio de Janeiro. Em seu discurso, Darcy Ribeiro pontuou: “A dor que me dói, a lágrima que eu choro, é pelas pesquisas que foram interrompidas e nunca mais se farão. É pelos jovens cientistas que teríamos formado e que não se formarão nunca. A Ciência é a última profissão que não se aprende nos livros. É um cientista que cria outro. E vocês, os mais preparados para frutificar novas gerações, foram proibidos de se multiplicar.”