Segundo matéria do jornal Estadão, existiam em 2016 no Brasil 159 manicômios sem previsão de fim. Segundo a escritora Daniela Arbex ainda existem cidades onde se realiza a prática do eletrochoque (prática bastante controversa mesmo entre os psiquiatras). É necessário pensarmos em saúde mental coletivamente. É tarefa de cada um de nós nos conscientizarmos da importância da retomada dos movimentos sociais o que certamente será possível no governo Lula. Pois segundo a imprensa, Bolsonaro desarticulou os movimentos, quis institucionalizar os manicômios disfarçados de comunidades terapêuticas ( mais evangélicas do que científica), e um de seus ministros de saúde defendeu choques elétricos como tratamento, desumano em desuso há trinta anos.
A retomada da luta antimanicomial, nos moldes de suas origens é um grande desafio. Ver o paciente como um ser total e não apenas em seu aspecto biológico, psicológico ou social de forma dicotomizada. Atualmente o que verificamos é a predominância de um tratamento de saúde que reduz a pessoa a sua dimensão bioquímica, influenciado pela indústria farmacêutica.
Há mais de 30 anos aqui na região da baixada santista foi desativado o manicômio Anchieta – uma verdadeira casa de horrores onde as pessoas eram trancafiadas, permaneciam nuas lá dentro, com péssimas condições de higiene e alimentação, sendo que muitos chegavam a morrer. Foram criados os NAPS (atualmente CAPS) – modelo de saúde mental revolucionário: portas abertas e tratamento humanizado. Após 20 anos da reforma psiquiátrica, segundo dados do ministério da saúde o SUS conta com 2661 CAPS espalhados pelo Brasil.
A desativação do Anchieta e a criação dos NAPS deve-se em grande parte, a prefeita Telma de Souza e o então secretário de saúde Davi Capistrano Filho. Eles permaneceram dias dentro do manicômio até que ele fosse definitivamente desativado. Infelizmente, hoje ainda existe anexo ao hospital Guilherme Álvaro, uma unidade designada como “Polo de Atenção Intensiva (PAI)” – que me foi descrito in off (por uma profissional e uma paciente) como um lugar de muitas restrições. É importante informar que há diferentes posicionamentos mesmo entre profissionais que defendem a luta antimanicomial. Aqueles que defendem a internação no PAI, a justificam com os seguintes argumentos: tentativa de suicídio sem nenhuma proteção possível; dependência química – de forma a isolá-lo de seu meio social; e quando a situação clínica do paciente também exige.
É uma grande contradição existir até hoje em Santos um local que se assemelha a um manicômio, pela supressão de liberdade, do ir e vir, de ênfase biomédica no tratamento, totalmente antiquado. Na cidade precursora da luta antimanicomial, que foi um modelo de referência em saúde e que recebeu influência de Trieste na Itália, bem como exportou saberes e práticas inovadoras para outros países. A construção do modelo revolucionário de saúde mental se deu no país inteiro.
O grande idealizador da reforma psiquiátrica que se contrapõe aos manicômios foi Franco Basaglia, referência mundial na luta antimanicomial. Ele nasceu em Veneza em 1924 e faleceu em 1980 na mesma cidade.
Durante os anos 60 ele dirigiu o hospital de Gorizia e ali testemunhou uma série de abusos e negligências no tratamento dos pacientes. Por isso, promoveu junto a um corpo de psiquiátricas mudanças práticas e teóricas no tratamento conhecido como “psiquiatria democrática”.
Basaglia negou a prática de cultura médica que toma o paciente como objeto de observação destituído de direitos enquanto cidadão e ser humano. Sobre esta questão, as construções panópticas foram feitas com esta finalidade. Trata-se de um modelo circular que permite que todos sejam vistos constantemente.
No ano de 1973 ele dirigiu o hospital psiquiátrico de Trieste que veio a ser a principal referência mundial para a reformulação das práticas em saúde mental (reconhecido pela Organização Mundial de Saúde – OMS – como tal).
Quando esteve no Brasil no final dos anos 70 conheceu o hospício de Barbacena que carregava nas costas mais de 60 mil mortes. Daniela Arbex descreveu em seu livro “Holocausto Brasileiro” que Basaglia afirmou “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como esta.”
A retomada da luta antimanicomial, suas assembleias permanentes com a participação de usuários, profissionais e familiares é um grande desafio na atualidade e depende de cada
Na medida em que critico esse modelo nefasto de internação forçada, sinto-me na obrigação de apontar alternativa.
Uma das possibilidades que pesquisei é um tratamento que foi realizado em Trieste na Itália, através do qual o paciente é visto de uma maneira total e não fragmentada. Não isolado e desvinculado de seu meio. Naquelas situações em que comumente são chamadas de situações de crise: grave sintomatologia psiquiátrica aguda; grave ruptura no plano familiar e/ou social; recusa dos tratamentos; além do clássico dogma “perigoso para si e para os outros”, nas intervenções realizadas em Trieste, o contato com o paciente em crise pode se dar em seu meio: sua casa, o bar e outros diferentes locais e os intermediários são as pessoas de sua convivência diária (amigos, familiares e vizinhos).
As estratégias de intervenção e cuidado são as mais diversas e flexíveis possíveis o que não determinará uma ruptura na sua continuidade existencial e histórica (geralmente traumático), preservando seus direitos de cidadão.
Retornando ao Brasil, o que podemos aprender é que os CAPS poderiam dar esta resposta à crise, sem recorrer a um modelo de internação tradicional, pois os CAPS foram criados justamente também para substituí-lo. E quando o CAPS faz encaminhamentos para internação clássica de supressão de liberdade, isto leva a necessidade de uma autorreflexão sobre o serviço e sua fragilidade que, reflexão esta deverá ser permanentemente ser posta em prática.
Angela Gouveia Franco,
Estudiosa da Saúde Mental, escritora e jornalista