“São João, trigo no chão” é um dito comum entre os produtores de trigo no Rio Grande do Sul, conta Mauricio Roman. Refere-se à época de plantio da semente do trigo, um cultivo de inverno. Tradicionalmente, é a época mais propícia também para o plantio dos cultivos livres de agroquímicos, uma vez que a maior parte dos cultivos transgênicos são de verão, como o milho, o algodão e a soja. Mas esse cenário pode estar a ponto de mudar.
Como produtor de trigo agroecológico, Mauricio Roman recebeu com surpresa a notícia da aprovação do primeiro trigo transgênico do mundo para cultivo no Brasil. No último dia 2 de março, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou o trigo HB4 da empresa Bioceres, tema que não estava pautado publicamente para avaliação no órgão, responsável pela regulamentação de organismos geneticamente modificados (OGM) no país.
A preocupação procede: uma espécie de trigo não transgênica pode ser polinizada pelo trigo transgênico, afetando e modificando sua composição genética. Além disso, a já familiar preocupação com os agroquímicos, que, pelo ar, afetam campos próximos e, por sua toxicidade, alteram os ciclos do solo e das espécies nele presentes.
Por isso, assim como Mauricio, outros produtores do Movimento dos Sem Terra (MST) do Rio Grande do Sul se alarmaram com a decisão. “Nos chocou, porque não teve debate na sociedade brasileira e nem nos estados produtores, que são Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, responsáveis por 90% da produção de trigo”, comenta Roman.
Não é a primeira aprovação silenciosa por parte da CTNBio em relação ao trigo HB4. Desenvolvida na Argentina, a biotecnologia dependia do aval do Brasil, por ser seu principal comprador de trigo. Em novembro de 2021, a CTNBio concedeu a aprovação condicionada, mas apenas para importação da farinha. Desde então, aberto o caminho, outros seis países já autorizaram o trigo HB4 para importação: Colômbia, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Nigéria e África do Sul.
No entanto, no caso de cultivo, os riscos são maiores, uma vez que plantar implica uma intervenção no ecossistema e em outras produções de trigo não transgênico, seja convencional ou orgânico. Por isso, a aprovação deveria demandar um processo de avaliação e aprovação particular, diferente da importação da farinha.
Desde 2021, a discussão sobre o HB4 ficou amortecida, como ressalta a advogada socioambiental Naiara Bittencourt. “Justamente porque a CTNBio afirmou categoricamente, tanto em notas oficiais quanto no próprio posicionamento, que a aprovação se restringia à farinha de trigo [HB4] importada da Argentina”, diz a advogada da ONG Terra de Direitos.
Por isso, afirma, a aprovação para cultivo foi inesperada. “A CTNBio aprovou o cultivo do trigo transgênico baseado no mesmo processo de aprovação da farinha transgênica, ou seja, foi uma decisão tomada a toque de caixa.” Ela atribui a aprovação, neste caso, ao fato de que a composição do corpo técnico é, ainda, a indicada pelo governo Bolsonaro. “Provavelmente, o receio de indicação de uma nova composição tenha influenciado a tomada de decisão já nesse começo de ano de 2023”, observa.
Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e ex-representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio entre 2008 e 2014 ressalta que, por protocolo, a CTNBio deve abrir o debate público no caso de OGM inéditos no país, além de promover estudos de impacto de campo.
“E esse trigo é um fenômeno inédito, assim como no momento foi a soja e o milho”, ressalta. “As normas da CTNBio sobre segurança ambiental estabelecem que as espécies vivas que residem nos espaços onde a nova variedade será cultivada, e que podem ser afetadas, devem ser avaliadas. Isso não foi feito”, diz Melgarejo, destacando tratar-se de um drible na lei de biossegurança.
“No Cone Sul, onde o inverno é bem marcado, existe uma espécie de janela fechada ao uso de determinados agrotóxicos durante o inverno, porque as plantas transgênicas dominantes – milho, soja, algodão – são culturas de verão, de maneira que, no inverno, temos uma espécie de refresco para o ambiente e para a sociedade porque não existiam plantas transgênicas cultivadas”, explica.
Com o trigo, então, essa janela se abre, sendo uma cultura de inverno recebendo agroquímicos e, portanto, com uma possibilidade mais baixa de recuperação por parte dos ecossistemas. O engenheiro agrônomo enfatiza o risco: “Nós vamos ter então, uma carga permanente de veneno jogada sobre o território, escorrendo para os aquíferos, o que significa o envenenamento de tudo.”
Além da composição do corpo técnico da CTNBio, o apoio de parte do setor produtivo que, inicialmente, rejeitava a entrada do trigo transgênico no mercado brasileiro, também pode ter pesado como respaldo para a aprovação do HB4 no país. A mudança de postura do setor aconteceu após uma pesquisa encomendada pela Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados) apontar que 70% da população brasileira consumiria o trigo transgênico. Realizada pela Indexsa, a pesquisa entrevistou 3.135 pessoas em 12 capitais do país.
Glufosinato de amônio
Como todo desenvolvimento transgênico para a agricultura, a semente compõe um pacote tecnológico. No caso do trigo HB4, vem acompanhado do agroquímico glufosinato de amônio, que, segundo pesquisadores, é ainda mais tóxico que o glifosato, este mais utilizado nos campos tanto na Argentina quanto no Brasil.
Para os produtores agroecológicos, o risco desse agrotóxico não é uma novidade. Há poucos dias, produtores agroecológicos iniciaram uma ação na Justiça Federal do RS justamente pela aplicação desse herbicida. Por ação do vento, o glufosinato aplicado em campos convencionais de arroz pode chegar em lavouras de cultivos orgânicos.
“Esse glufosinato resseca as plantas que estão próximas”, conta Roman. “Isso é muito perigoso, porque já existem estudos que mostram que o glufosinato causa câncer”, enfatiza.
Leonardo Melgarejo destaca que o glufosinato de amônio também é genotóxico, característica que provoca deformações no processo de divisão celular e que, portanto, pode afetar bebês; e neurotóxico, o que significa que afeta o sistema nervoso central – com possibilidade de processos degenerativos em adultos, como o Alzheimer. “É um problema sob o aspecto da vida em seu todo, em todas as faixas etárias, e que vai estar presente, pela primeira vez na história, em uma alimentação básica humana – porque as mudanças nesse tipo realizadas na soja ou no milho se destinavam especialmente à alimentação animal”, afirma.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, mais de 1.500 novos herbicidas foram liberados para uso no Brasil. Além dos possíveis impactos no campo, no ecossistema e na saúde, Roman destaca que isso dificulta o trabalho da produção livre de venenos, inclusive em seu processo de certificação.
“Apenas três laboratórios técnicos conseguem identificar esses herbicidas na planta: um em Pernambuco, um em Goiás e um em Santa Maria. Esses laboratórios só conseguem identificar 40 tipos de venenos. Se um produtor pulveriza próximo à minha lavoura, e ela foi atingida, não consigo identificar que produto é esse”, afirma Roman.
Além disso, especialistas na Argentina já alertavam sobre o risco de mistura dos grãos em moinhos e transporte das sementes, risco que agora abarca também o Brasil com o cultivo do trigo HB4.
Ações
O Ministério Público e o Conselho Nacional de Biossegurança serão acionados por representantes da sociedade civil em relação à aprovação do trigo HB4 para cultivo, como conta Naiara Bittencourt. Os ofícios serão encaminhados considerando os questionamentos sobre o processo de aprovação por parte da CTNBio.
Em primeiro lugar, aponta a advogada socioambiental, não houve clareza durante o debate em 2021 sobre se a aprovação se tratava não apenas do consumo, mas do cultivo do trigo transgênico. Em segundo lugar, as irregularidades na audiência pública convocada em 2021, que não contou com representantes dos direitos dos consumidores, e a inconsistência de informações concedidas por parte da Bioceres – como, por exemplo, afirmar que o glufosinato não seria aplicado porque sequer era aprovado na Argentina, o que não se confirma. Por fim, questiona-se a ausência de publicação de estudos sobre impactos ambientais.
“Existe um conselho de ministros composto por 11 ministros que é o Conselho Nacional de Biossegurança, que pode reavaliar e tomar as decisões em última e definitiva instância, alguma decisão tomada pela CTNBio, avaliando também os interesses nacionais, tanto econômicos e de soberania nacional”, conta. “Vamos acioná-lo, apontando todas essas irregularidades e os vícios oriundos do processo de autorização comercial do trigo transgênico.”
Um novo ofício também será encaminhado ao Ministério Público Federal, entendendo a necessidade de uma revisão sobre o trigo HB4, considerando o impacto no meio ambiente, na biodiversidade e em outros cultivos de trigo convencionais, crioulos ou locais no Brasil.
O Brasil de Fato entrou em contato com a CTNBio e os ministérios de Ciência e Tecnologia e da Agricultura, mas não obteve respostas até a publicação desta matéria.
(Por Brasil de Fato)