Colunistas Geraldo Varjabedian

A Têmpera

Por Geraldo Varjabedian.
Lembra azul cobalto? Entre índigo e cobalto, não é? Fiz essa cor com uma dose de solvente e uma de água. Mas ao invés de seco, certinho, deixei escorrer. Uma trinchada sobre outra, fundiu; ficou lindo. Achei meio forte no começo, mas aceitei, porque as outras paredes ainda eram brancas. Fiz o mesmo com o ocre. Ficou amarelado, cúrcuma. Duas aguadas sobre o látex simétrico. Mas a cor ficou bem queimada. Um sári de seda. Ficou tão equilibrado que repeti na parede oposta, onde pus a mandala. Só que acidentei um pingo a mais de vermelho na receita. Para alaranjar a simetria, sabe? Gosto de mandalas, mas detesto simetrias… Depois, de um tom de sangue fiz um escarlate bem diluído. Preferi dar duas, três aguadas. A textura encarnada em camadas, na parede maior, emocionou. Um toque fosco. Mancha desigual à espera de afresco. Nem têmpera. Nem aquarela… O que adoro nesse quarto é o inusitado que persiste na pintura. Não é hipócrita como látex nem séria como cal… Não anotei o que fiz. Não gosto de receitas. Sou indisciplinado. Sendo verdadeiro, mesmo? Insubordinado! Adoro rir de tiranos… O primeiro dos tiranos de quem rio? Eu! Rio da simetria. Parece que vivo por isso. Ou, talvez, por isso, tornei-me um homem sozinho com minha assimetria. Edipiano ou não, odeio tiranos. E tiranas. Demoro a descobri-los, porque confiar é meu recurso mais sutil de suicídio. Mas confio… Poucas coisas são mais falsas que a simetria. É quase sempre adequação. Até os olhos são diferentes um do outro, não? Olhares também… E sou furioso. Natural. Taurino demais pra conter um vulcão pelas aparências. Foi o que descobri um pouco depois de reformar este quarto. Não consigo ser meia pessoa. Tenho fé em escolhas: destino é crendice… Isso aqui é meu começo. Antes deste quarto Eu não era… Apenas queria. E foi por querer que estudei suas temperaturas para criá-lo, capricornianamente. Cores. Clima. Luzes. A fumaça do incenso, o sopro do vão da porta. Bambu pingando o tule sobre a cama. Aparador de velas. Mandala. Versos. Mantras. Um quarto tântrico para um casamento desfeito! Onde encontrar forças para continuar trabalhando? Nem cheguei a tocar os portais do céu. Descobri que estava sozinho em meu quarto… E o chão sumiu… Tanta mentira em mim. Tanta mentira sobre amor. Tanta mentira sobre a verdade… Por dois anos, este quarto foi o único dos lugares. Um não-lugar. Porão alto, onde teci excitações e arritmias à espera da luz que dava fim ao paradigma simétrico. Não há inocentes: assimétricos são os tolos. E eu sou tolo confesso e assumido. Confio. E confio. E confio de novo. De frente. De esbarrão.De borco. Confio com o coração nas mãos… Um brinde à consciência da ansiedade! Este quarto é amostra do que respondi ao mundo quando percebi que havia sido enganado friamente. Orgulho, claro! Tanto investido no trabalho. Tanta inteligência e esforço. Tanto posto em sonhos. Tanto acreditado que não houve soterramento: desabamos. Eu e as coisas… Este quarto foi um rito de passagem. Foi aqui que restabeleci meu orgulho de homem. Estava destruído. Desdentado. Desacreditado. Humilhado. Broxa. Ansioso. Mórbido, ainda que medicado. Este quarto é o retrato de um artista anestesiado para não criar, não desejar. Vazão de dor em estética… Não creio que possa descrevê-lo em mais detalhes. Sua história é digna de fechá-lo a pregos… Mas – bom suicida – escolhi a vida. Joguei fora os comprimidos. Limpei os olhos de cada uma das certezas. Bebi o luto e revivi. Por isso, a porta fica destrancada quando não estou. Não há segredos ali onde descobri que minha vida só tem valor para mim. Onde deixei de morrer para ser feliz, nasceu um amante grato e caloroso da vida. Não, não disse que sou muita coisa! Apenas não sou mais mórbido, nem doentiamente simétrico como o paradigma quebrado. Bem melhor que o garoto que pintou este sobrado de branco há oito anos, sozinho sobre uma escada de duas pernas. Garoto de ouro. Criativo. Esforçado. Produtivo. Abnegado. Bovino. Amoroso. Um pateta raciocinando em letra cursiva… Não havia noite que não pusesse flores na cabeceira. Quase sempre, bilhete apoiado no vaso… Boa noite! Bom dia! Mil beijos! Amo-te! Sai cedo, tá? Volto antes das sete. Trago pão… Gostava daquele menino. Tolo. Feito para servir, mas com o defeito de amar tiranos. Dentro dele, Eu. Desde sempre. Levei uma vida para compreender que – assimétrico mesmo – Eu era possível. Entrei naquele quarto para trocar de casca. Quando as luzes se apagaram, contei luas e luas negociando a portas fechadas comigo. Fazendo contas. Mais contas. Buscando razões. Tentando explicar. Rascunhando cartas. O tolo de ouro e Eu. A falência. Minha fé. As coisas que trazia da terapia. A zoeira dos remédios. As vozes de homens antigos que moravam em meu coração – Levante! Levante! Vá trabalhar! – Eu e meus ímpetos arianos. As calmas. A luz das veias faiscando ritmos no coração. Valores de asa quebrada. Éticas de outro continente. Medos de todo tipo. Pânicos de quem esqueceu a sorte. Quantas certezas adestradas, sentadas ao pé da cama: não esqueço o olhar de pavor das certezas. Foi extraordinário… Condenação simétrica e linear das certezas… Você conhece juiz mais impiedoso que você mesmo? Quem mais pode condená-lo a amar tiranos? Quem, além de você mesmo, pode exercer perdão, compaixão, gratidão? Um ano e meio exercitando cada músculo. Cada tendão. E doía. Caralho… Como doía! Noites e noites de exercício. Exaustão. Controle. Meditação. Respiração. Medo de dar em nada. Coragem de ter medo… De manhã, antes do sol: caminhada! E o sol dizia: o dia é para aquele lado, vá!… Foi mais ou menos nessa época que montei sobre um velho criado-mudo, o altar; na quina do azul com o ocre. Foi logo que virei a cama para o sol… Dessa massa, pari a mim como homem. Reaprendi minha essência… Essencial não é a precisão de receber, mas a angústia de doar. Foi do que morreu o garoto tolo… Deserto é acreditar que podemos mudar alguém ou que alguém dê o que não tem… Nada além. Receber é simétrico: doar é do formato do coração…

Geraldo Varjabedian – Outono de 2009

Compartilhar