Kultura Viramar

O PRIMEIRO DESASTRE AMBIENTAL DO BRASIL…

Tal como uma ferida aberta e latejante, ainda hoje lá está o canal artificial do Valo Grande, em Iguape, litoral sul de São Paulo, com que a ambição, o descuido e a prepotência humana, para encurtar caminhos, pretenderam um dia ligar o Rio Ribeira ao Mar Pequeno, mas que na verdade constituiu o gatilho de um dos mais trágicos e eloquentes desastres ambientais e econômicos já ocorridos no Brasil. Ao menos exploremos o didatismo desse triste evento.

Nas primeiras décadas do século 19, Iguape, município do litoral sul de São Paulo, rivalizava com o Rio de Janeiro em importância portuária e em vida social e cultural, com suas famílias mais ricas brindadas com constantes espetáculos europeus de arte e até com a presença de um Consulado Francês. Toda essa riqueza e ostentação deviam-se à especialização de seu porto na exportação de vários produtos agrícolas da província paulista, destacadamente do famoso “arroz de Iguape”, o que ensejou a instalação no município de perto de uma centena de engenhos de beneficiamento desse produto agrícola.

O arroz e demais produtos agrícolas chegavam ao porto marítimo de Iguape (contíguo à área urbana que faz frente para o Mar Pequeno, esse separando o continente da Ilha Comprida) carregados em canoas que desciam o Rio Ribeira. A partir do porto fluvial de Iguape, duas alternativas eram então utilizadas. Ou os produtos eram descarregados no próprio porto fluvial de Iguape, de onde vinham em carroças e carroções por terra até o porto marítimo, em um percurso de perto de 3 km, ou as canoas seguiam adiante pelo Rio Ribeira entrando no oceano através de sua foz e volteando para o interior do Mar Pequeno até o porto marítimo, em um percurso de algumas dezenas de quilômetros.

Estava assim logisticamente colocada a pragmática ideia de se escavar um canal de algo em torno de 2 km ligando diretamente o porto fluvial ao porto marítimo. Essa reivindicação, com a força da elite política e econômica de Iguape, foi levada a D. Pedro I e em 1827 eram iniciadas as obras do “Valo”, que por projeto teria pouco mais de 4 metros de largura e 2 km de extensão.

Em 1855, com pompa e circunstância o “Valo” era inaugurado, com o que Iguape se tornava geograficamente uma ilha. Em menos de 50 anos o pequeno “Valo”, pensado para dar passagem a uma canoa por vez, atingia 200 metros de largura, e mais à frente um pouco, 300 metros, sugando 2/3 do volume hídrico do Rio Ribeira. Era agora já o “Valo Grande”. A força erosiva das águas solapava e carreava os barrancos, invadia e destruía áreas agrícolas e urbanizadas. Os sedimentos carreados para o Mar Pequeno assorearam por completo o porto marítimo inutilizando-o para operações portuárias já ao final do século 19.

As mudanças na dinâmica fluviomarinha da região introduziram radicais variações ambientais na temperatura, salinidade, correntes e turbidez das águas. Formam-se várias novas ilhas de sedimentos no Mar Pequeno. Escasseiam radicalmente a maior parte das espécies de peixes e mariscos que sustentavam uma segunda forte atividade econômica no município e em toda a região. Por sua vez, a foz original do Rio Ribeira, agora dando vazão a apenas 1/3 das águas originais, é também vítima do assoreamento e de outras tantas modificações decorrentes da alteração de sua dinâmica fluviomarinha. Enfim, uma radical transformação geológica de toda a região. Como se poderia esperar, já sem seu porto Iguape entra em franca decadência econômica, social e cultural. Sua população escasseia e empobrece. Acabava-se melancólica e tragicamente a época áurea.

Em 1978, em atendimento aos reclamos locais, o governo do estado providencia a construção de uma barragem (terra e pedras) para o fechamento do Valo Grande. Com a construção dessa barragem não se deu, no entanto, o milagroso retorno às condições de equilíbrio anteriores à abertura do “Valo”. Muitas décadas correndo com apenas uma pequena parte de sua vazão natural o Rio Ribeira, a jusante da embocadura do “Valo”, assoreou-se e deixou de inundar sazonalmente vastas áreas baixas limítrofes. Essas áreas foram então ocupadas para a cultura da banana, a alternativa econômica que sucedeu a operação portuária/agrícola anterior. A partir dos anos 1980 uma sequência de grandes inundações causou prejuízos enormes aos bananais (e também ao cultivo do chá) e a outras atividades agrícolas e sítios urbanos da região.

A retirada da barragem, apontada então como a responsável pelas grandes enchentes, era agora a reivindicação que se colocava a uma população cruelmente vitimada em suas atividades, economias e patrimônios. As próprias sucessivas enchentes, com o auxílio de ferramentas manuais utilizadas por moradores locais, incumbiram-se do rompimento total da barragem.

Técnicos debruçaram-se sobre o problema e propuseram como melhor, e bem pensada, solução para o complexo problema a construção de uma nova barragem, mas agora com vertedouro e comportas de controle de vazão e com eclusa para possibilitar a navegação. A proteção das margens e do fundo do canal contra a erosão constituía parte integrante desse mesmo projeto. Em 1993 as obras civis da nova barragem foram concluídas, porém as instalações hidráulicas (vertedouro, comportas e eclusa) não foram executadas por alegada escassez de recursos financeiros para tanto (quantos votos tem Iguape?). Boa parte dessas obras civis já foi hoje também comprometida.

O Valo Grande continua como uma ferida aberta, de uma pungente carga didática a técnicos e governantes (que incrivelmente continuam a ser tão maus ouvintes): não se intervém na natureza sem antes compreender todas as leis, processos e fenômenos naturais geológicos e biológicos que vão sofrer alguma interferência. Essa compreensão é essencial para a correta adequação de projeto e plano de obra, de tal forma que não se tenha que inexoravelmente arcar com as consequências de violentas respostas da natureza. Esta, frente a uma agressão estúpida, buscará sempre, por seus próprios meios, uma nova harmonização de suas forças e agentes naturais. E pobres daqueles que se colocarem à frente dessas forças.

Vale a propósito lembrar duas sábias afirmações que já lá num tempo bem distante traziam para a humanidade o âmago dessa mesma mensagem didática. Francis Bacon, em 1620, e Leonardo Da Vinci, em torno de 1500, respectivamente nos alertavam: “A Natureza para ser comandada precisa ser obedecida”; “Se tiveres que tratar com água, consulta primeiro a experiência e depois a razão”.
Crédito: Álvaro Rodrigues dos Santos

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