Após casos de agressão e detenção de pesquisadores, Pedro Hallal conversou com o Brasil de Fato RS e a Rede Soberania
“Uma pesquisa que vai mudar a situação da saúde brasileira, vai salvar vidas”. Com essa afirmação, o reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, destaca a importância do estudo nacional EPICOVID-19, que vai identificar a presença de anticorpos para coronavírus na população brasileira. Após os casos de violência sofridos pelas equipes de pesquisadores que estão fazendo as coletas em alguns municípios, no último final de semana, colocarem em evidência o aspecto de desinformação e desorganização por parte da população e de órgãos federais e municipais, o Brasil de Fato RS e a Rede Soberania entrevistaram o reitor, que também é epidemiologista, em live transmitida ao vivo na tarde desta terça-feira (19).
Na conversa mediada por Katia Marko, do Brasil de Fato RS, e por Luiz Müller, da Rede Soberania, Hallal falou sobre os casos de violência, mas também detalhou a pesquisa e sua importância para o país superar a falta de informação sobre como a doença está afetando as diversas regiões. Enalteceu o papel das universidades, da ciência e do Sistema Único de Saúde (SUS), que saem fortalecidos nessa pandemia, e falou da situação no Rio Grande do Sul, onde a pesquisa foi realizada previamente e, já na sua terceira fase, verificou que para cada um caso confirmado da covid-19, existem cerca de 10 infectados não registrados. “Não é o momento ainda de relaxar as medidas de distanciamento, talvez daqui a pouco, mas agora não é, então sempre que possível temos que ficar em casa”, afirma, avaliando os atuais movimentos de flexibilização do distanciamento social no Rio Grande do Sul.
O estudo nacional
O estudo está sendo feito em 133 cidades brasileiras, de todos os estados e do Distrito Federal. Em cada cidade, 250 pessoas são testadas. Em matéria publicada no El País, o reitor afirmou que a pesquisa é a maior do mundo do tipo. Na Áustria, foi feita uma com 1.500 pessoas. Em Santa Clara, nos Estados Unidos, testaram cerca de 3.000 pessoas. Houve outra pesquisa em Gangelt, na Alemanha, mas bem menor. E na Itália foram feitos 3.300 testes em um levantamento.
“Não é uma mostra com voluntários, é uma mostra sorteada da população de todos os bairros das cidades, que inclui pessoas de todos os níveis sociais, de todos os gêneros, raças. Tem por objetivo conhecer a proporção da população brasileira que esteve ou está infectada pelo coronavírus, conhecer as desigualdades regionais do avanço do coronavírus, a velocidade com que ele está se propagando e várias outras questões”, explica.
Apesar das agressões, pesquisa segue
O reitor disse que todos os trâmites necessários foram tomados em diversas esferas, mas, mesmo assim, “os pesquisadores, que deveriam ser tratados com aplausos nesse momento, trabalhando no meio de uma pandemia, foram recebidos com violência em alguns lugares”. Ele destaca que, “apesar do projeto ter sido submetido à Comissão de Ética e Pesquisa (CONEP) no meio de abril, apesar de o estudo usar todos os protocolos de segurança pactuados com o Ministério da Saúde, apesar de todos os 2.300 entrevistadores espalhados pelo país terem feito o teste para o coronavírus e somente aqueles com resultado negativo e sem sintomas terem ido a campo, apesar do Ministério da Saúde ter comunicado às prefeituras e às secretarias de Saúde dos estados, as nossas equipes em alguns lugares foram recebidas de forma truculenta pelas forças policiais”, disse, em referência aos pesquisadores que chegaram a serem presos em algumas cidades.
Apesar disso, afirma que os casos são exceções e que na grande maioria dos lugares a pesquisa transcorre normalmente. Ele destaca que muitos “secretários de Saúde e prefeitos, mesmo que possa ter havido falha na comunicação do Ministério da Saúde, tiveram sensibilidade de consultar a veracidade da pesquisa, ligando para o Ministério da Saúde, para a UFPel”. Ele conta que a equipe chegou a pensar em cancelar a coleta de dados, mas ao fim decidiu manter, “pois a ciência não poderia se render para a negação da ciência”.
A coleta, que deveria já ter sido concluída, teve sua conclusão adiada para esta quinta-feira (21), diz Hallal ao afirmar que “nós pesquisadores não vamos nos render a tentativas de intimidação, seguiremos em campo” e destacar que algumas das pessoas que passaram por situação de violência se colocaram em papéis de resiliência e voltaram à campo. Até a realização da live, mais de 18 mil pessoas haviam sido entrevistadas e testadas, de um total de 33 mil.
Ao refletir sobre os motivos que levam a população a agredir os pesquisadores, ele apontou a atuação de grupos de extremo conservadorismo que existem não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo. Mas apontou algumas diferenças: “Hoje na Alemanha se alguém fizer apologia ao nazismo será repreendido, mas no Brasil se alguém fizer apologia à ditadura e censura, essa pessoa vai se sentir autorizada. As pessoas estão se sentindo autorizadas a agredir pesquisadores e negar a ciência, estão se sentindo tão ridículas a ponto de lançar um abaixo-assinado para fazer uma expedição ao canto da terra e provar que ela é plana”.
Nesse sentido, lamenta o reitor, em alguns lugares muitos se sentem autorizados a demonstrar a truculência. Para ele é importante “não dar palco para essas pessoas”, mas pelo contrário, seguir fazendo ciência e não ficar calado frente aos fatores e políticas que contribuem com o alto índice de infecção nas pessoas.
Situação no RS
A pesquisa EPICOVID-19 foi executada inicialmente no Rio Grande do Sul, antes de ser implementada pelo Ministério da Saúde em todo o país. Já com os resultados de sua terceira etapa, Hallal aponta que a subnotificação de casos “é impressionante”. Se alguém quiser saber o número de infectados no estado, “pega-se as estatísticas oficiais e multiplica por 10. Cada caso confirmado representa 10 outras pessoas que não sabem que têm o vírus”.
O reitor destaca que essa pesquisa é relevante e mostra uma grave situação, “porque as que não sabem que estão contaminadas infelizmente acabam transmitindo involuntariamente para outras pessoas. Se eu faço o teste e dá resultado positivo, se eu for uma pessoa razoável, vou ficar em quarentena em casa. O problema é quem não sabe que está positiva”.
Apesar dos dados que indicam a alta subnotificação, Hallal ressalta que a prevalência de infecção no RS é muito baixa em relação a outros locais mais atingidos do país. Na terceira fase da pesquisa no estado, verificou-se que a cada 450 pessoas, uma está infectada. “Quando a gente compara com o resultado de Manaus, única cidade com dados já disponíveis da pesquisa nacional, lá tem uma pessoa infectada a cada 10”, assinala.
Estado não deveria relaxar o isolamento
Apesar da situação mais confortável no Rio Grande do Sul, ele destaca outro dado levantado pela pesquisa, esse preocupante. “A adesão às medidas de distanciamento apontadas na pesquisa, em pergunta direta para as pessoas, está diminuindo. Na primeira fase, no feriado da Páscoa, só 20% saiam de casa diariamente. Na última fase, na semana passada, aumentou para 30% e neste final de semana vamos a campo de novo e tenho medo que tenha aumentado mais ainda”.
Em relação ao distanciamento ocontrolado implementado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) no RS, ele avalia que o modelo tem várias características positivas, “pelo menos o estado tem um modelo”, mas falha na sua implementação. “O momento de relaxar as medidas de isolamento é quando a curva está descendente. Se baixarmos as restrições enquanto estiver estabilizada, a gente vai fazer ela subir de novo”, afirma, defendendo que ainda é necessário manter o isolamento.
“Dados brasileiros sugerem que, na melhor das hipóteses, o país está começando a estabilizar para começar a descer, como acontece em todos os outros países. A tendência é que os números começam a descer em breve. Mas o Brasil é muito grande, o Rio Grande do Sul sozinho é do tamanho da Bélgica, por exemplo. Então a curva pode descer em alguns lugares, mas no estado não temos evidência que esteja descendo”, pontua.
Ao ser questionado sobre o plano de retorno às aulas no Rio Grande do Sul anunciado pelo governador, avalia que a medida é totalmente equivocada. “Esse momento é de elaborar um plano para quando tiver que reabrir as escolas, como a China fez. Como vai ser? Quantos alunos terão? Vai ser rodízio, revezamento, vai ter espaçamento maior, vamos fazer espaços maiores na sala de aula? Era para se estar fazendo um plano e não devolvendo as crianças para o colégio, parece que não houve aprendizado”, critica.
Governo federal não garante o isolamento
Outro tema em destaque foi a questão da desigualdade social, que, segundo Hallal, é um olhar sempre observado nas pesquisas epidemiológicas pela UFPel. “É o princípio fundamental do nosso grupo”, destaca, questionando o motivo de as pessoas estarem pressionando governos para saírem de casa. Para ele, isso é resultado da não garantia do direito de ficar em casa por parte do governo federal.
“Não podemos esquecer que primeira proposta do governo era dar R$ 200,00 de auxílio emergencial, que aumentou depois para R$ 600,00 e é muito menor que o observado em outros países. As pessoas claro que estão amedrontadas, todos estamos. Agora elas querem se proteger e não podem se proteger. O Estado brasileiro está falhando e é dirigido por um governo que está colaborando com isso, e pressionando os governos para que as pessoas saiam às ruas”, avalia.
Ciência, universidades e SUS fortalecidos
Hallal destaca também o importante papel que estão tendo a ciência, as universidades e o SUS neste momento de pandemia. “Se as pessoas tinham dúvidas do papel da universidade, elas não têm mais como ter dúvida. As universidades estão dando exemplo nessa pandemia, eu não vi em nenhum lugar do mundo elas responderem tanto como aqui no Brasil” disse, apontando para além de medidas como testes de vacinas e pesquisas epidemiológicas, iniciativas únicas como a produção da insumos como álcool gel e máscaras.
Ele destacou a importância da territorialização do SUS, “tão criticado e subfinanciado”, para evitar a aglomeração de pessoas em hospitais, citando como exemplo a situação na Itália. “O SUS vai sair muito fortalecido. Infelizmente a gente não pode falar sai no passado e nem no presente porque temos muito que navegar. Mas ciência, universidade e SUS são três palavras que daqui para frente serão ditas com muito mais respeito do que eram mencionadas até hoje”.
Para Hallal, o senso de cuidado coletivo tem que ser estimulado durante essa pandemia do novo coronavírus. “O problema da pandemia é que ela não nos deixa ser individualista. Essa lógica de senso de pertencimento coletivo é a única forma de enfrentar a pandemia, e numa sociedade que cada vez mais é individualista, a gente se coloca em um paradoxo fenomenal”, reflete.
Assista à entrevista completa:
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko e Camila Maciel