Colunistas Márcia Simões Lopes

Rupturas em curso

Ensaio Sobre o Desconhecido,

Não é somente o eixo do planeta Terra que está de mudança. Não são, apenas, terremotos, erupções vulcânicas, acusando o alvoroço nas camadas interiores da terra. Também na mente do ser humano um gigantesco iceberg de idéias preso ao velho e obsoleto padrão mental se desprende, para ser livre como oceano. 

Há uma revolução em curso no campo das idéias, mudando velhos paradigmas.

Um jornalista, bacana, responsável por uma boa mídia comentou a respeito da falta de disposição do governo para realizar, rupturas. Enxergando a situação, de maneira diferente da dele, compartilhei o meu ponto de vista dizendo que estão ocorrendo rupturas, sim, e citei entre outros exemplos a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o fato da Funai estar sob direção Indígena e o Ministério dos Direitos Humanos estar sendo ocupado por um professor, advogado, ativista, negro. 

Perguntaram onde nos exemplos que citei está, a ruptura. 

Então, a dificuldade em perceber a diferença entre um ministério dos povos indígenas e uma central única dos trabalhadores, é evidente.  Como se os indígenas fossem uma categoria reivindicatória igual é a categoria de bancários ou qualquer outra. Uma ignorância histórica, que retira a possibilidade de enxergar a riqueza, deste momento histórico.

Agora os povos indígenas estão na vanguarda do governo, reconstruíndo o país. E essa presença ancestral, diante da nação, pela primeira vez coloca o Brasil de frente para o seu passado. Oportunidade inédita de acessar o ponto de mutação – quando tudo começou com a chegada do invasor. 

Existe uma cultura de exploração e submissão trazida pelo colonizador 523 anos atrás e que neste exato momento está de frente para a contracultura de preservação da floresta, da terra e de todos os seres vivos do planeta, inclusive o ser humano.

É parte da dinâmica deste novo tempo reescrever a história, tecer princípios, verdades, criar novas culturas quebrando padrões de comportamento e valores, tais como: meritocracia, hierarquia, competição além de outros modelos sociais das relações humanas, estabelecidos pelo patriarcado. 

A relação dos povos originários com a terra é envolvida por conhecimento e sabedoria milenares, passados oralmente pelo anciãos, de geração em geração, até os dias atuais. Trata-se de uma filosofia de vida, uma forma de viver onde a pessoa realiza a jornada dela ciente de que é parte da grande Teia do Pertencimento –  Teia da Vida -,  onde tudo está conectado e a ação de cada um reverbera no outro e no Todo. Por isso o chefe Sioux, nativo da Ilha da Tartaruga – atual América do Norte – diz: tudo que acontece à terra acontece também aos filhos da terra.  

O conhecimento antigo dos povos originários a respeito da terra revoluciona a mente do cidadão civilizado – o não indígena. 

Desde quando teve início a catequese, trazida pelo colonizador, a mente do não indígena é treinada para acreditar que a Terra é um organismo inanimado e tudo o que existe no planeta está disponível ilimitadamente para exploração e usufruto dos seres humanos. O que é uma grande mentira e ignorância. 

Existe um ecossistema autoconsciente e responsável pela vida no planeta. Cada ser vivo possui seu propósito, sua medicina e faz parte da grande família planetária. 

Estamos, agora, vivendo o divisor de águas da história. E a terra – motivo das guerras passadas – permanece sendo o alvo das disputas.  

Anterior à colonização, em 1500, existiam vários Povos nativos neste imenso território que passou a chamar-se Brasil. Cada povo indígena tinha sua cosmologia, sua cultura, porém todos tinham o mesmo entendimento a respeito da terra como organismo vivo; então havia um deus para o povo rio, um deus para a povo pedra, um deus para o povo floresta, um deus para o povo montanha, enfim, e havia também o criador disso tudo –  o Grande Mistério que habita dentro de cada um de nós e em todas as partes do universo. 

Com a chegada do invasor europeu, esse entendimento dos povos originários a respeito da natureza e da vida foi recriminado e substituído pelas crenças do colonizador. Dando passagem à idéia de um só deus, com poderes para julgar, condenar e punir pecadores. 

A catequese do colonizador europeu orquestrou o adestramento da mente dos povos que aqui viviam e igualmente daqueles violentamente arrancados de suas casas no continente africano, para serem escravizados aqui. 

A idéia de posse e exploração da terra, incluindo suas riquezas naturais, bem como a idéia de escravidão – ambas idéias trazidas pelo colonizador -, substituíram a mentalidade harmoniosa com a natureza, dos povos originários. 

Neste momento histórico, a consciência de que a terra é um organismo vivo finalmente alcançou a mente da cidadão civilizado – o não indígena. Estamos experienciando esse paradigma. Saímos da travessia e embarcamos num novo patamar de consciência onde temos a oportunidade de enxergar e aprender com o novo que se apresenta.

A relação com a terra determina a saúde mental e o nível de consciência de uma pessoa. Porém, fomos educados a acreditar que 8 – 9 – 10 anos de escola nos torna aptos para entender a vida, viver a vida, realizar a vida e obter prosperidade, sabedoria e paz; aptos, também, para ocupar um lugar de destaque no Mercado inventado pelo invasor. 

Esse é um roteiro desumano, elaborado de costas para a natureza e de costas para o ser humano, responsável por milhões de pessoas com depressão em todo o mundo, responsável pela escravidão, pelo racismo, pela desigualdade social, pela pobreza, pelo desmatamento, pelo ódio que tomou conta das sociedades inclusive no Brasil. Trata-se de uma educação que separa o Homem da natureza, que separa o Homem da sua raiz ancestral e igualmente o separa da Teia do Pertencimento. Tornando-o avulso no planeta. 

A sensação de “avulso” sentida pelo não indígena faz com que ele se sinta sozinho no mundo. Por isso o não indígena está, permanentemente, em busca por respostas; sem perceber que quase toda a totalidade daquilo que busca se encontra dentro dele mesmo. 

Claro que as provações estão de prontidão, aguardando tal qual esfinge os viajantes da terra sem males, passarem. Descobri, na montanha, que a distração leva uma pessoa a cair num mata burro; e que na cidade o mata burro é o ego. 

Saber lidar com as armadilhas do capitalismo, com as minúcias das emboscadas é um dos desafios aos povos originários, agora dentro da estrutura do Estado. 

O desafio, para o não indígena, está em desapegar-se das velhas e obsoletas crenças que atravessam as gerações familiares até o presente momento; está em abrir-se para o novo e para o desconhecido, está em temperar-se de humildade para conseguir enxergar a contracultura compartilhada pelos povos originários. 

Estamos diante desse cenário!

Importante dizer, que o não indígena também tem muito a contribuir e enriquecer para a construção do novo mundo que já se mostra. Apesar de apartado das próprias raizes e da mente corrompida pela catequese o não indígena, igual ao indígena, também possui memória antiga, orientando os caminhos através dos tempos; embora ele não tenha ciência disso. Ainda. Possui legado trazido das lutas contra a exploração, a escravidão, a discriminação e toda forma de opressão. Há sabedoria e honra na história do não indígena.

Com relação à política, percebo que as mídias e os jornalistas de esquerda continuam na tecla da “denúncia”; também, na tecla do “concordo e discordo”. Não enxergam o novo, escancarado diante de todos; não compreendem o momento presente e por isso recriam o passado. Não criam, portanto.
Neste momento histórico, o passado do Brasil está à frente do Brasil. Esse é o caminho para o futuro. 

Quem estiver disponível para enxergar, despertará para a nova realidade. Quem não se entregar ao novo, dificilmente enxergará as novidades. Estando impossibilitado de surfar as rupturas em curso, portanto.


Marcia Simões Lopes

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